Año 5, Núm. 6, ISSN 2591-3476
O DIREITO À SAÚDE DOS DEPENDENTES DE TABACO NO BRASIL: UMA ANÁLISE A PARTIR DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA BRASILEIRO
THE RIGHT TO HEALTH OF TOBACCO-DEPENDENTS IN BRAZIL: AN ANALYSIS FROM THE JURISPRUDENCE OF THE BRAZILIAN SUPERIOR COURT OF JUSTICE
Fernanda Nunes Barbosa1
DOI: https://doi.org/10.37767/2591-3476(2021)05
Fecha de envío: 27.07.2021
Fecha de aceptación: 23.09.2021
RESUMEN:
O presente artigo analisa o direito fundamental e humano à saúde no Brasil a partir da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, referente à responsabilidade civil dos agentes produtores de tabaco pelos danos causados a seus consumidores. Como objetivos específicos, examina-se a importância da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco no âmbito internacional e interno, bem como o impacto que as decisões pretorianas geram na efetivação do direito à saúde, em especial à dos mais vulneráveis. Como conclusão, aponta-se que, embora o Brasil disponha de uma ampla proteção normativa multinível, a ausência de uma responsabilização civil da indústria pelos danos causados aos consumidores e aos cofres públicos do Estado brasileiro até os dias de hoje pode ser vista como um obstáculo à plena efetivação do direito à saúde sob a perspectiva das doenças relacionadas ao tabaco.
RESUMEN
El presente artículo tiene como objeto analizar el derecho fundamental y humano a la salud basado en la jurisprudencia de la Corte Superior de Justicia acerca de la responsabilidad civil de los productores de tabaco, por los daños causados a sus consumidores. Como objetivos específicos, se examina la importancia del Convenio Marco para el Control del Tabaco a nivel internacional y nacional, así como el impacto directo que generan las decisiones pretorianas en la salud, especialmente de los más vulnerables. En conclusión, puesto que, si bien Brasil tiene una amplia protección regulatoria multinivel, la ausencia de la responsabilidad civil de la industria por los daños causados a los consumidores y las arcas públicas del Estado brasileño hasta hoy pueden traducirse en un obstáculo a la amplia efectivización del derecho a la salud bajo la perspectiva de las enfermedades relacionadas con el tabaco.
PALABRAS CLAVE: Saúde; Tabaco; Responsabilidade Civil; Vulnerabilidade.
KEY WORDS: Salud; Tabaco; Responsabilidad civil; Vulnerabilidad.
I. Introdução.
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária do Brasil (ANVISA), o tabaco é responsável por cerca de seis milhões de mortes em todo o mundo e 200 mil óbitos ao ano no país.2 A cada quatro segundos, uma pessoa morre em decorrência do consumo de tabaco no mundo. Nas Américas, uma a cada trinta e quatro segundos, o que representa um total de quase 1 milhão de mortes concentradas na região3.
O tabagismo é considerado uma doença crônica que resulta da dependência à nicotina. Em decisão histórica, a Corte Superior da Província do Québec, no Canadá, em maio de 2015, reconheceu a responsabilidade civil da indústria do tabaco pelo dano da dependência da nicotina. Na ocasião, o tribunal canadense concluiu que a dependência da nicotina é causa de responsabilidade civil dos fabricantes de cigarros (PASQUALOTTO, 2018) e um fator de risco para outras 50 doenças, tais como câncer, doenças cardiovasculares, tuberculose, infecções respiratórias, úlcera gastrintestinal, impotência sexual, infertilidade em mulheres e homens, osteoporose e catarata.4 Além disso, o tabagismo é considerado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), como a principal causa de morte evitável no mundo5 e fator de risco para a Covid-196.
A partir do reconhecimento da importância de se adotar medidas de controle do tabaco a fim de conter a expansão da chamada epidemia do tabagismo, foi desenvolvido, sob os auspícios da OMS, o primeiro tratado de saúde pública global, a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT). Até o presente momento, 182 países já o assinaram e ratificaram, inclusive o Brasil7, sendo 30 deles nas Américas.
No próprio Preâmbulo do tratado vem expresso o reconhecimento de que “os cigarros e outros produtos contendo tabaco são elaborados de maneira sofisticada de modo a criar e a manter a dependência", bem como "que a dependência do tabaco é classificada separadamente como uma enfermidade pelas principais classificações internacionais de doenças”8.
O Relatório da OMS sobre a Epidemia Global de Tabaco 20199 aponta que o Brasil é o segundo país do mundo, ficando atrás apenas da Turquia, a cumprir as seis medidas MPOWER10 de controle do tabaco. Nesse sentido, segundo a chefe do Secretariado da Convenção-Quadro para Controle do Tabaco da OMS (CQCT/OMS), Vera da Costa e Silva, "a experiência brasileira tem muito a auxiliar na implementação da estratégia global de fortalecimento e aceleração da implementação da Convenção-Quadro"11. Mas a pergunta que se coloca no breve espaço deste texto é a seguinte: por que, no Brasil, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) não reconhece a responsabilidade civil das empresas de tabaco pelos danos provocados por seus produtos a consumidores e ao próprio Estado, nem mesmo quando se encontram presentes vulnerabilidades específicas de alguns consumidores12? Por que a distribuição dos encargos sociais advindos dos danos relacionados ao tabaco é feita de maneira a sempre beneficiar o agente causador do dano e não a pessoa humana e a própria saúde pública nacional?
II. O direito à saúde no Brasil
Conforme aponta o saudoso jurista italiano Stefano Rodotà, a modernidade ocidental veio a organizar-se em torno aos homens que nascem todos livres e iguais, mas sua liberdade e igualdade não foram reconfiguradas quando a fraternidade se uniu para constituir a histórica tríade dos princípios. Ela somente foi potencialmente integrada a partir do segundo pós guerra, com a revolução da dignidade (RODOTÀ, 2014).
A relevância da fraternidade, não mais apenas como princípio moral, mas como forte referência jurídica, passa a encontrar, a partir de então, uma direta e compartilhada expressão no princípio da solidariedade, destinado a guiar tanto a ação pública como a ação privada. Assim, da solidariedade emerge a dignidade da pessoa humana, que não pode ser associada a situações em que esta dependa da benevolência de outrem, confinada na dependência. Descobrimos, portanto, uma mais distante fundação dos direitos sociais, bem antes da primeira individualização como categoria autônoma nos anos 1950 (RODOTÀ, 2014).
Com efeito, um dos direitos sociais mais caros ao ser humano é justamente o direito de acesso à saúde, que é, a um só tempo, direito individual de segunda dimensão e direito coletivo de terceira dimensão (SARLERT, 2016), porquanto de direito do consumidor se trata, em especial numa sociedade capitalista como a contemporânea, em que as relações estão mais e mais monetarizadas e atravessadas por interesses econômicos. A nível mundial, a Organização Mundial da Saúde descreveu, dentre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável no que toca à saúde e bem-estar, a necessidade de “atingir a cobertura universal de saúde, incluindo a proteção do risco financeiro, o acesso a serviços de saúde essenciais de qualidade e o acesso a medicamentos e vacinas essenciais seguros, eficazes, de qualidade e a preço acessíveis para todos.”13 Depreende-se, portanto, que a saúde também é, em nível mundial, reconhecida como um dos direitos que ainda carecem de efetividade satisfatória.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 25, elenca que toda pessoa terá direito a um nível de vida suficiente que assegure a si e a sua família saúde e bem-estar. O Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, chamado Protocolo de San Salvador, que ingressou na ordem nacional brasileira por meio do Decreto nº 3.321, de 30 de dezembro de 1999, elenca em seu artigo 10 que toda pessoa tem direito à saúde, entendida esta como a fruição do mais alto nível de bem-estar físico, mental e social. No panorama nacional, a Constituição Federal brasileira, em seu artigo 196, preconiza a saúde como direito de todos e dever do Estado após apontá-la, em seu art. 6º14, como um dos direitos sociais que compõem o quadro dos Direitos e Garantias Fundamentais do Brasil.
O que é fundamental destacar neste contexto é que, por direito à saúde entende-se não só a necessidade de assegurar ao indivíduo que se mantenha com vida, mas sim garantir-lhe o acesso a todo o conjunto de políticas públicas ou a meios privados de promoção da saúde, na forma do artigo 199 da Constituição Federal brasileira de 1988, bem como o alcance do necessário para a manutenção de seu bem-estar, tanto de ordem física como mental.
Com efeito, o estudo da efetivação do direito fundamental e humano à saúde perpassa pela análise dos princípios de ordem internacional e nacional atinentes à matéria, bem como pelas disposições de ordem civil e consumerista interna dentro da esfera de proteção (e promoção) do vulnerável nas relações econômicas. Para além da efetivação global do direito à saúde (seja por parte do Estado, seja do sistema privado), é preciso que o produtor, in loco, seja responsável diretamente pelos danos que os produtos que coloca em circulação causem à coletividade, mormente quando auferem lucros bilionários, como é o caso da indústria do cigarro15.
II. O direito à saúde dos dependentes de tabaco e as externalidades negativas do produtor
Conforme acima referido, o Brasil dispõe de uma ampla proteção normativa multinível no que tange ao direito à saúde. Todavia, a ausência de uma responsabilização civil da indústria pelos danos causados aos consumidores e aos cofres públicos do Estado brasileiro (ou seja, ao Sistema Único de Saúde brasileiro, o chamado SUS) até os dias de hoje pode ser vista ainda como um obstáculo a ser suplantado para uma plena efetivação do direito à saúde sob a perspectiva das doenças relacionadas ao tabaco.
Neste item, duas situações precisam ser apontadas: uma de caráter individual; outra de caráter coletivo. Em ambas, o direito à saúde pode ser visto tanto sob um viés preventivo como sob um viés ressarcitório e compensatório, considerando-se os danos causados a cada vítima que demonstre o preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, bem como os danos causados à saúde pública (mais propriamente ao SUS), a chamada externalidade negativa ou custo social do comportamento da empresa.
No caso dos danos causados pelo tabaco à saúde de todos os brasileiros, uma Ação Civil Pública da Advocacia Geral da União foi ajuizada pedindo o ressarcimento aos cofres públicos mais dano moral coletivo pelas externalidades negativas contra as principais produtoras de tabaco no país, com o objeto de proteger "o direito fundamental à saúde pública por meio do ressarcimento dos danos, passados e presentes, causados pelo cigarro ao Sistema Único de Saúde – SUS, especificamente relacionados aos gastos incorridos pela União para o custeio do tratamento de doenças comprovadamente atribuíveis ao consumo de cigarros"16. Como fundamentos de direito positivo foram suscitados, além do Código Civil brasileiro e do Código de Defesa do Consumidor, os já mencionados arts. 196 e 198 da Constituição Federal e a Convenção Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT), requerendo-se a implementação de seu art. 19, que prescreve: “1. Para fins de controle do tabaco, as Partes considerarão a adoção de medidas legislativas ou a promoção de suas leis vigentes, para tratar da responsabilidade penal e civil, inclusive, conforme proceda, da compensação. [...]”
Vale referir que nos Estados Unidos, as fabricantes já ressarcem os cofres públicos, o que agora se pleiteia também no Brasil. O célebre acordo (Master Settlement Agreement - MSA) foi celebrado nos Estados Unidos para encerrar as demandas promovidas por mais de quarenta Estados norte-americanos contra as principais indústrias fumageiras. Quatro Estados fizeram acordos separados (Mississipi, Florida, Texas e Minnesota), recebendo um total de 35 bilhões de dólares de ressarcimento, ao passo que os outros 46 Estados fizeram um acordo conjunto com as sete indústrias do fumo, para obter destas o ressarcimento dos gastos públicos com doenças relacionadas ao tabaco. Como parte do acordo, as indústrias concordaram em abandonar algumas práticas de marketing de cigarro, admitiram dissolver algumas entidades financiadas por elas para criar dúvidas sobre descobertas científicas sérias relacionadas ao consumo de cigarros, bem como a pagar, de forma perpétua aos Estados, um valor anual ressarcitório de despesas com doenças relacionadas ao tabaco. Nos primeiros 25 anos seria paga – como vem sendo – a quantia de 246 bilhões de dólares a título de indenização, findos os quais seguiriam pagando 10 bilhões de dólares ao ano. No ano de 1988, o Congresso norte-americano majorou esse valor para 516 bilhões de dólares (FACCHINI, 2018).
No plano individual, verificamos duas situações no Brasil: o reconhecimento por muitos tribunais estaduais da existência de responsabilidade civil da indústria pelas doenças e mortes relacionadas ao consumo de cigarro, como no emblemático caso Catarina Oneide, e o desacolhimento destes mesmos pleitos no âmbito da Corte Superior (STJ), responsável pelo julgamento, em última instância, das ações indenizatórias, harmonizando a interpretação da legislação federal no Brasil.
Um dos casos de maior repercussão no Brasil pode ser considerado o de Catarina Oneide, julgado pelo Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul em dezembro de 201817. Além da demonstração dos pressupostos da responsabilidade civil no caso (conduta, nexo causal, risco da atividade e defeito do produto, e dano), o caso também exemplifica uma questão que é central na defesa do consumidor, a saber, o tema das vulnerabilidades: nessa hipótese concreta havia tanto vulnerabilidade etária, como as vulnerabilidades econômica e social, pois o falecido era pessoa de baixa instrução, e o consumo do produto iniciara ainda nos anos 1960, quando ele contava com vinte anos de idade (menor e relativamente incapaz pelos parâmetros do Código Civil brasileiro então vigente), somado ao fato de que a informação sobre os malefícios do cigarro era nula na época. Muito pelo contrário, a propaganda do produto era totalmente permitida e absolutamente presente na vida de adultos, jovens e crianças.
O caso mostra-se paradigmático porque, embora pela primeira vez em um processo cível de que se tem notícia o próprio atestado de óbito tenha apontado a vinculação entre a doença que acometeu fatalmente a vítima (doença pulmonar obstrutiva crônica grave - DPOC) e o fato de o falecido ter fumado por mais de 30 anos, a condenação da indústria foi negada pela Instância Superior de Julgamento (STJ), utilizando-se dos mesmos argumentos usados em outros casos (desde 2011). Ou seja, as vulnerabilidades concretas (específicas) do consumidor em questão não foram levadas em conta, nem tampouco o nexo causal específico atestado no próprio documento de óbito da vítima.
O principal argumento utilizado para se afastar a responsabilidade civil em casos similares, a saber, a ausência de nexo causal entre o consumo do produto e o óbito, foi afastado pela ciência médica, explicitamente, nesse caso concreto, estabelecendo-se como a verdade dos autos. No julgamento pelo tribunal estadual, a narrativa de ausência de nexo causal foi textualmente rejeitada para se reconhecer o que o Código Civil brasileiro expressamente permite, em seu art. 94518, que é a chamada culpa ou fato concorrente da vítima. O nexo etiológico entre o consumo do produto e a doença que levou o consumidor a óbito foi afirmado na instância ordinária, mas ainda assim, o Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial interposto pela indústria, aplicou ao caso os mesmos parâmetros e citou os mesmo precedentes invocados desde, pelo menos, 2011, a despeito da distinção entre os casos, tanto no aspecto de considerar-se as vulnerabilidades concretas da vítima (vulnerabilidade etária, em razão da idade de início do consumo, e vulnerabilidade econômica), como em termos de prova do nexo causal em concreto.
III. A jurisprudência do STJ sobre a responsabilidade civil da indústria do cigarro
Em pesquisa realizada junto ao site do Superior Tribunal de Justiça brasileiro, abarcando desde 01 de janeiro de 2011 até 31 de dezembro de 2020, verificou-se que mais de quatro dezenas de ações versaram sobre o tema da responsabilidade civil da indústria do tabaco na mais alta Corte do país competente para o julgamento de questões infraconstitucionais, como é o tema da responsabilidade civil por danos.
Ocorre que de todas as decisões em nenhum dos casos houve a condenação da indústria tabagista pela Corte Superior. Nas únicas 02 ações em que a vítima ou seus familiares foram vitoriosos no STJ (em decisões monocráticas e não colegiadas, registre-se), questões de mérito não foram objeto de análise. Em uma delas a Corte deu ganho de causa à vítima apenas para afirmar que não havia sido implementado o prazo prescricional na hipótese (Resp. nº 1.268.309/RS). Na outra (REsp. nº 1.096.400/RS), o julgador monocrático entendeu que não poderia reexaminar o caso por imposição do óbice sumular nº 07, que proíbe o revolvimento de matéria fático-probatória pelo STJ.
Nos casos em que se enfrentou o tema da responsabilidade civil pelos danos causados individualmente às vítimas do cigarro, a argumentação para negar o pleito dos consumidores girou em torno de: i. ausência de nexo causal (não poderia haver nexo causal presumido); ii. livre arbítrio da vítima; iii. licitude da atividade, que ilidiria o nexo causal; iv. o cigarro ser produto de periculosidade inerente e não produto defeituoso; v. existência de precedentes no sentido da negativa do dever de indenizar; vi. impossibilidade de reconhecimento de responsabilidade objetiva por risco integral; vii. ausência de violação ao dever de informar e à boa-fé objetiva; viii. prescrição do direito, com base no artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).
A partir desses números, volta-se para a questão inicial aqui proposta e pergunta-se: por que, no Brasil, as empresas de tabaco não são responsabilizadas pelos danos que seus produtos causam à saúde (já que o são em outros países), nem mesmo quando se encontram presentes vulnerabilidades específicas de alguns consumidores, como as vulnerabilidades etária e econômica? Por que a distribuição dos encargos sociais advindos dos danos relacionados ao tabaco é feita de maneira a sempre beneficiar o agente causador do dano, atribuindo às próprias vítimas (e ao Estado) as externalidades negativas da sua produção, com prevalência dos aspectos econômicos sobre o direito à saúde?
Infelizmente, no Brasil, a narrativa da indústria e de seus defensores, que é uma narrativa que exclui importantes dados científicos e que ignora as circunstâncias próprias de cada caso (vida) concreto ainda é vitoriosa.
Conforme bem aponta Fernando Aith, "a doença, como todo evento relevante relacionado com a existência humana, exige uma explicação" (AITH, 2017: 43). Ocorre que essa explicação, no caso das doenças tabaco relacionadas, tem sido dada excluindo importantes dados científicos, bem como ignorando as circunstâncias próprias de cada caso concreto em prol de uma narrativa única e abstrata. Exemplo disso vislumbra-se em várias decisões e textos acadêmicos, como no voto do Ministro Relator do Recurso Especial nº 1.843.850/RS19, que refere o termo “hábito de fumar” para descrever o comportamento da vítima ao invés de “dependência do cigarro”, o que desqualifica, pela linguagem, tudo que já foi dito pelas ciências da saúde sobre o mecanismo de dependência desenvolvido nos consumidores de produtos de tabaco.
Assim, verifica-se que ainda falta no debate acerca da responsabilidade civil por danos à saúde relacionados ao consumo de tabaco no Brasil: i. uma atenção especial às circunstâncias do caso concreto; ii. um maior apoio da ciência médica no debate que envolve o estabelecimento do nexo causal, ainda que se possa reconhecê-lo, em hipóteses concretas, apenas parcialmente; iii. o reconhecimento de que a saúde (e, portanto, também a doença) de qualquer pessoa, necessariamente irá depender de variáveis próprias do sujeito e que qualquer abordagem de responsabilidade civil nessa matéria precisará levar em conta o tema da concausa preexistente.
Com efeito, alguns chamam de destino, sorte ou azar que determinadas pessoas fiquem doentes e outras não. O fato é que a herança genética de cada um também desempenha seu papel, constituindo antecedente ao próprio desencadear do nexo causal (CAVALIERI FILHO, 2020). Assim, as predisposições patológicas agravantes do resultado não afastam a responsabilidade do agente, embora possam levar a uma diminuição do quantum indenizatório. Entender de modo diverso corresponderia a assumir uma postura de culpabilização integral da própria vítima, em direção oposta ao que hoje se afirma no chamado Direito de Danos. Em tais casos, portanto, o agente deverá responder pelo resultado, independentemente de ter ou não conhecimento da concausa antecedente que o agravou. Então, pergunta-se: Por que seria diferente nos casos de responsabilidade civil por danos à saúde relacionados ao consumo do cigarro?
IV. Saúde para quem?
Quando o tema da saúde é tratado na perspectiva do consumo de produtos nocivos como o tabaco é importante destacar que, além dos jovens, as classes sociais com renda mais baixa e com menos instrução são as mais afetadas. A tabulação por classificação de países do Banco Mundial por nível de renda reforça os achados da análise por região da OMS. As maiores reduções no consumo de tabaco, desde que os esforços para conter essa epidemia começaram a ser enviados, foram vistas principalmente em países de alta renda.20
Para 2015–2025, sob o pressuposto de que a intensidade das medidas de controle permaneça inalterada, espera-se uma diminuição líquida de 19,5 milhões de fumantes. Essa redução projetada incluiria a diminuição de 58,8 milhões de fumantes em países de alta e média alta renda e um aumento total de 39,3 milhões de fumantes em países de renda média baixa e baixa21.
No cenário atual, de uma pandemia ainda não controlada, dados de pesquisa da Fiocruz informam que 34% dos fumantes brasileiros declararam ter aumentado o número de cigarros consumidos no período de pandemia do Cornonavírus. O fato de a nicotina ser altamente viciante gera a tendência de que este consumo mais expressivo permaneça após o surto da Covid-19. Os dados sobre a relação entre cigarro e saúde mental, recolhidos pelo grupo de pesquisa Convid, da Fiocruz, responsável pela análise de dados de 44 mil pessoas em estudo feito em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) entre abril e junho de 2020, ainda aponta que o aumento foi maior entre pessoas de menor escolaridade (45,1%) e entre mulheres (38,1%), o que confirma a incidência do consumo do produto em grupos sociais mais vulneráveis.22
Como referem Lourdes Peroni e Alexandra Timmer ao abordarem os significados da palavra vulnerabilidade, um paradoxo central da vulnerabilidade é que ela é tanto universal como particular. Como seres humanos todos somos vulneráveis, mas experimentamos essa vulnerabilidade de maneira singular em nossos corpos (PERONI; TIMMER, 2013).
Então, como sujeitos vulneráveis que somos, estamos todos, constantemente, sujeitos a sofrermos uma ofensa, um prejuízo (harm); prejuízo esse que vem de diferentes formas, as quais se entrecruzam e se reforçam. Lesões (injuries) podem ser físicas, morais, psicológicas, econômicas e institucionais, só para mencionar algumas. E isso nos dá uma ideia de como a vulnerabilidade é tanto particular como universal. E seguem as autoras: “Nossas ‘diferentes formas de incorporação’ e nossas diferentes posições dentro de ‘redes de relações econômicas e institucionais’ significam que cada um de nós experimenta a vulnerabilidade de forma única. Martha Fineman aponta que a experiência de vulnerabilidade ‘é muito influenciada pela qualidade e quantidade de recursos que possuímos ou podemos comandar’.23
Promover direito à saúde significa, portanto, também atentar para as diferentes vulnerabilidades que acometem os sujeitos, especialmente em países nos quais as desigualdades sociais e econômicas estão presentes de forma mais marcante. O direito à saúde deve atuar como mais uma instância de consolidação dos valores humanitários de uma democracia solidária24, na qual toda forma de discriminação deve ser repelida. Só assim se poderá afirmar a plena efetivação do direito fundamental e humano à saúde.
V. Conclusão
Conforme demonstrado ao longo do texto e afirmado em uma série de documentos internacionais e legislação do Brasil, o país desfruta de uma experiência relativamente exitosa em termos de políticas públicas relativas ao controle do consumo de tabaco.
No entanto, verifica-se que este ônus tem sido atribuído exclusivamente ao Estado brasileiro e às próprias vítimas do produto, que têm arcado com todas as externalidades negativas desta lucrativa indústria. Aliás, a cada ação do Estado para promover a saúde pública e, em decorrência, limitar o consumo de um produto tão letal para quem o consome como para quem o produz, constata-se uma ação contraposta do setor produtivo, como aponta a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Conforme relatório da Convenção-Quadro para o Controle do Tabaco (CQCT) da Organização Mundial da Saúde (OMS), a indústria do cigarro tem interferido de forma “cada vez mais perversa” nos esforços de governos para combater a venda e o consumo de cigarros e produtos relacionados ao tabaco.
Por fim, o fato de a comercialização de cigarros constituir atividade lícita não exime as fabricantes de responsabilidade pelos danos causados por seu produto à saúde pública, o que, infelizmente, tem sido afirmado pela jurisprudência da mais alta Corte brasileira para questões não constitucionais. Pensar de forma diversa seria desconsiderar toda a evolução no terreno da responsabilidade civil desde o século XIX, quando atividades lícitas, mas potencialmente causadoras de danos, no pós-Revolução Industrial, passaram a gerar responsabilidade para seus agentes. Assim ocorreu com os empregadores de modo geral, transportadores e, mais recentemente, com os fornecedores. Por que seria diferente justamente quando está em jogo um dos direitos humanos mais importantes como o direito à vida e à saúde?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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• Brasil. STJ. Recurso Especial nº 1.843.850/RS. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. J. 02/04/2020. DJe 15/04/2020.
• Brasil. TJRS. Apelação Cível nº 70059502898, Rel. Des. Eugênio Facchini Neto, DJ de 22/01/2019.
• Brasil. TRF 4ª Região. Ação Civil Pública nº 5030568-38.2019.4.04.7100. Inicial disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-21/agu-ressarcimento-gastos-saude-fabricantes-cigarro.
• CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 2020.
Pasqualotto, Adalberto de Souza (2018). As lições de Quebec e os caminhos do Brasil. In: Pasqualotto, Adalberto de Souza; Facchini Neto, Eugênio; Barbosa, Fernanda Nunes (Org.). Direito e Saúde: o caso do tabaco. Belo Horizonte: Letramento, p. 197-242.
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• Rodotà, Stefano (2014). Solidarietà: un'utopia necessaria. Bari: Laterza.
• SARLET, Ingo Wolfgang. Mark Tushnet e as assim chamadas Dimensões (“Gerações”) de Direitos Humanos e Fundamentais. Revista Estudos Institucionais, v. 2, n. 2, 2016.
Sites
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www.anvisa.gov.br
www.paho.org
www.inca.gov.br
www.actbr.org.br
www.ensp.fiocruz.br
www.conjur.com.br
www.ohchr.org
www.cidh.org
www.planalto.govr.br
www.tobaccofreekids.org
www.folha.uol.com.br
www.stj.jus.br
www.tjrs.jus.br
www.drugabuse.gov
www.unifesp.br
www.nacoesunidas.org
1 Doutora em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da Graduação em Direito e do Mestrado em Direitos Humanos da UniRitter. Editora da Série Pautas em Direito/Editora Arquipélago. Parceira e Consultora da ONG ACT Promoção da Saúde. Advogada. E-mail: fernanda@tjnb.adv.br. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-6268-1396
2 Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/tabaco/danos-a-saude. Acesso em 23 de julho de 2021
3 Disponível em: http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/28380/9789275318867_spa.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 23 de julho de 2021
4 Disponível em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/tabaco/danos-a-saude. Acesso em 23 de julho de 2021
5 Disponível em: <http://www.who.int/en/news-room/fact-sheets/detail/tobacco> Acesso em: 10 de maio de 2019.
6 Disponível em: https://www.inca.gov.br/perguntas-frequentes/tabagismo-e-coronavirus-covid-19. Acesso em 10 de agosto de 2020.
7 Disponível em: https://www.who.int/fctc/cop/en/. Acesso em 01 de junho de 2019.
8 Convenção Quadro para o Controle do Tabaco: Texto oficial, Instituto Nacional do Câncer, Rio de Janeiro, 2011.
9 Disponível em: https://actbr.org.br/oms-epidemia-tabaco-2019. Acesso em 23 de julho de 2021.
10 A sigla, em Inglês, representa as seguintes medidas: M (Monitorar o consumo e a aplicação de políticas públicas) P (Proteger a população da exposição à fumaça do cigarro) O (Oferecer ajuda para abandonar o fumo) W (Advertir sobre os perigos do tabaco) E (Fazer cumprir as proibições à publicidade) R (Aumentar os impostos). Disponível em: http://iris.paho.org/xmlui/bitstream/handle/123456789/28380/9789275318867_spa.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em 23 de julho de 2021.
11 Disponível em: http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/materia/detalhe/46829. Acesso em 13 de outubro de 2019.
12 Genérica seria aquela relacionada a um status coletivo/de grupo, tal como o ser consumidor, já que todo fumante, assim como também os chamados fumantes passivos, são consumidores (ainda que por equiparação) do produto cigarro. Específicas seriam as vulnerabilidades próprias do fumante que, não necessariamente, estariam presentes em todos os consumidores do produto, tais como: vulnerabilidade etária (idade de início do consumo); de gênero; econômica; intelectual; psicológica; etc.
13 Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs/3. Acesso em 10 de julho de 2021.
14 “Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.”
15 Ela movimenta uma economia de bilhões de dólares por ano, sendo maior que o PIB de diversos países (somados), como o vizinho Uruguai e a longínqua Albânia, conforme apurada pesquisa que constou do voto do Desembargador Relator Eugênio Facchini Neto na Apelação Cível nº 70059502898, proveniente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul/BRASIL e publicada no DJ de 22/01/2019. Confira-se em: www.tjrs.jus.br.
16 Brasil. TRF 4ª Região. Ação Civil Pública nº 5030568-38.2019.4.04.7100. Inicial disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-mai-21/agu-ressarcimento-gastos-saude-fabricantes-cigarro. Acesso em 10 de junho de 2021.
17 Brasil. TJRS. Apelação Cível nº 70059502898, Rel. Des. Eugênio Facchini Neto, DJ de 22/01/2019.
18 “Art. 945. Se a vítima tiver concorrido culposamente para o evento danoso, a sua indenização será fixada tendo-se em conta a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano.”
19 Brasil. STJ. Recurso Especial nº 1.843.850/RS. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze. J. 02/04/2020. DJe 15/04/2020.
20 WHO global report on trends in prevalence of tobacco smoking 2000-2025. Disponível em: https://www.who.int/tobacco/publications/surveillance/trends-tobacco-smoking-second-edition/en/. Acesso em 10 de maio de 2020.
21 WHO global report on trends in prevalence of tobacco smoking 2000-2025, second edition. Geneva: World Health Organization; 2018, p. 22.
22 Disponível em: https://actbr.org.br/post/consumo-de-cigarro-aumentou-para-34-dos-fumantes-brasileiros-durante-a-pandemia-diz-pesquisa-da-fiocruz/18573/. Acesso em 20 de agosto de 2020.
23 No original: “Our ‘different forms of embodiment’ and our different positions within ‘webs of economic and institutional relationships’ mean that each of us experiences vulnerability uniquely. Martha Fineman points out that the experience of vulnerability ‘is greatly influenced by the quality and quantity of resources we possess or can command.’” PERONI, Lourdes; TIMMER, Alessandra. Vulnerable groups: the promise of an emerging concept in European Human Rights Convention Law. International Journal of Constitucional Law, Oxford, v. 11, n. 4, p. 1056-1085, out. 2013, p. 1058-1059.
24 Conforme art. 3º da Constituição Federal do Brasil de 1988: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (grifo nosso).