Direito do Paciente: fundamentos teóricos do novo ramo jurídico
Patient Law: theoretical foundations of the new legal branch
Aline Albuquerque1
DOI: https://doi.org/10.37767/2591-3476(2022)03
Fecha de envío: 23.07.2022
Fecha de aceptación: 13.09.2022
RESUMO:
O reconhecimento de que as pessoas detêm direitos específicos quando se encontravam sob cuidados em saúde, os denominados direitos dos pacientes, data de momento recente da história, a despeito dos inúmeros abusos ocorridos, ao longo do tempo. Este artigo parte do entendimento de que o Direito do Paciente se constitui enquanto ramo autônomo jurídico que se alicerça em três fundamentos teóricos: o Cuidado Centrado no Paciente, a vulnerabilidade acrescida do paciente a sua participação. Essas três abordagens encontram ampla aceitação no campo da saúde, sendo objeto de estudos ao longo do tempo. Trata-se de pesquisa teórica que tem como objetivo desenvolver aportes teóricos que confiram justificativa para o novo ramo jurídico, o Direito do Paciente. Conclui-se que o Direito do Paciente é um novo ramo alicerçado em construtos teóricos interdisciplinares, o que demonstra a sua riqueza teórico-prática e abertura para a complexidade do encontro clínico.
RESUMEN:
El reconocimiento de que las personas tienen derechos específicos cuando estaban bajo a los cuidados en salud, los llamados derechos de los pacientes, data de un momento reciente en la historia de la humanidad, a pesar de los numerosos abusos que se han producido a lo largo del tiempo. Este artículo parte del entendimiento de que el Derecho del Paciente se constituye como una rama jurídica autónoma que se plantea en tres fundamentos teóricos: el Cuidado Centrado en el Paciente, la vulnerabilidad incrementada del paciente y la suya participación. Estos tres enfoques gozan de amplia aceptación en el campo de la salud, siendo objeto de estudios a lo largo del tiempo. Es una investigación teórica que tiene como objetivo desarrollar aportes teóricos que justifiquen la nueva rama legal, el Derecho del Paciente. Se concluye que el Derecho del Paciente es una nueva rama sustentada en construcciones teóricas interdisciplinarias, lo que demuestra su riqueza teórico-práctica y apertura a la complejidad del encuentro clínico.
ABSTRACT
The recognition that people had specific rights when they were under health care, the so-called patients’ rights, dates from a recent moment in human history, despite the numerous cases of abuse that have occurred over time. This article is based on the understanding that Patients’ Right is constituted as an autonomous legal branch based on three theoretical foundations: Patient-Centered Care, the increased vulnerability of the patient, and his participation. These three approaches are widely accepted in the health field, being the subject of studies over time. This research aims to develop theoretical contributions that justify the new legal branch, the Patient's Rights. We concluded that Patients’ Right is a new branch based on interdisciplinary theoretical constructs, demonstrating its theoretical-practical richness and openness to the complexity of the clinical encounter.
PALAVRAS CHAVE: paciente; direitos humanos; cuidado centrado; vulnerabilidade; participação.
PALABRAS CLAVE: paciente; derechos humanos; cuidado centrado; vulnerabilidad; participación.
KEY WORDS: patient; human rights; care centredness; vulnerability; participation.
I. Introdução
O reconhecimento de que as pessoas detêm direitos específicos quando se encontram sob cuidados em saúde, os denominados direitos dos pacientes, data de momento recente na história da humanidade. Esse reconhecimento tardio deu-se a despeito dos inúmeros abusos ocorridos, ao longo do tempo, no âmbito das instituições de saúde, e da assimetria de poder caracterizadora da relação entre profissional de saúde e paciente. Com efeito, apenas na década de setenta, que se iniciou o processo de assunção do paciente como sujeito de direitos, notadamente do direito de decidir sobre a própria saúde e de não ter seu corpo invadido sem o seu consentimento. Contudo, foi tão somente na década de noventa que as leis nacionais de direitos dos pacientes começaram a ser adotadas pelos países, sendo a Lei da Finlândia a primeira, de 1991. Concomitantemente, no campo da Bioética, nos anos setenta, o paternalismo médico foi colocado em xeque e o respeito à autonomia pessoal do paciente passou a ser um comando ético amplamente reivindicado. Na esfera da saúde, a partir dos anos sessenta, o modelo biomédico foi desafiado pelo modelo biopsicossocial e, no século XXI, a centralidade do paciente passou a ser considerada um componente da qualidade do cuidado.
Nesse contexto, sob o prisma jurídico, o paciente passou a ser considerado como um titular de direitos, que são entendidos como uma ética mínima dos cuidados em saúde. Desse modo, nota-se que os direitos dos pacientes são conquistas extremamente recentes, consequentemente, a sua estruturação epistemológica como um ramo jurídico ainda se encontra em construção. Com efeito, tem-se a formulação de estudos ainda iniciais acerca desse novo ramo, o Direito do Paciente.
O Direito do Paciente é definido como o ramo jurídico que trata da legislação, da teoria e da jurisprudência concernente às normas que versam sobre os direitos dos pacientes e seus mecanismos de implementação (Albuquerque, 2020). O Direito do Paciente engloba um elenco de direitos, aceitos consensualmente em diversas regiões do globo, que derivam dos direitos humanos aplicados ao contexto dos cuidados em saúde. Esse elenco é constituído pelos seguintes direitos: direito de participar da tomada de decisão; direito ao consentimento informado; direito à segunda opinião; direito de recusar tratamentos e procedimentos; direito à informação; direito de acesso ao prontuário do paciente; direito à confidencialidade dos dados pessoais; direito ao cuidado em saúde com qualidade e segurança; direito de não ser discriminado e direito de apresentar uma queixa e direito à reparação (Albuquerque, 2020).
As pesquisas sobre o Direito do Paciente vêm sendo desenvolvidas pelos integrantes do Observatório Direitos do Paciente da Universidade de Brasília. Os seus pesquisadores identificaram que a proeminência do profissional de saúde e a posição subalterna do paciente se traduziam no campo jurídico, notadamente na ausência de um ramo específico para lidar com os seus direitos. Diante dessa constatação, pesquisas sobre temáticas relacionadas ao Direito do Paciente tem sido objeto de artigos, dissertações de Mestrado, teses de Doutorado, relatórios e notas técnicas, tais como: direito do paciente e COVID-19, direito do paciente e Telemedicina, direitos dos pacientes idosos, direitos no contexto da segurança do paciente, direitos dos pacientes oncológicos e direitos dos pacientes com demência, apenas para ilustrar. Ademais, o Observatório em Registra-se que, na esfera da América Latina, conforme pesquisa realizada pelo Observatório em parceria com a Redbioetica/UNESCO del Programa para América Latina y el Caribe de Bioética de la UNESCO (Oficina de Montevideo) sobre os direitos dos pacientes na região, apenas Equador, Chile, Costa Rica, El Salvador, Argentina e Uruguai possuem legislação nacional de direitos dos pacientes. Logo, não contam com lei nacional de direitos dos pacientes: Bolívia, Brasil, Colômbia, Cuba, Guatemala, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Haiti, Honduras, República Dominicana e Venezuela. Assim, constata-se o número reduzido de países que conta com leis nacionais de direitos dos pacientes, o que aponta para a desconsideração do direito do paciente na América Latina, que reflete o paternalismo médico predominante na região. Nesse sentido, o autoritarismo que marcou historicamente os países latino-americanos também é expresso na relação profissional de saúde e paciente, a qual ainda é essencialmente vertical, caracterizada pelo profissional como o decisor e pelo cuidado centrado na doença.
Desse modo, este artigo parte do entendimento de que o Direito do Paciente constitui um ramo autônomo jurídico que se alicerça em três fundamentos teóricos: o Cuidado Centrado no Paciente (CCP), a vulnerabilidade acrescida do paciente e a participação do paciente. Essas três abordagens encontram ampla aceitação no campo da saúde, sendo objeto de estudos ao longo do tempo, como demonstrado neste artigo. Além do fato de serem abordagens consolidadas na esfera da saúde, essas são consideradas como fundamentos do Direito do Paciente em razão de justificarem a existência de direitos específicos titularizados por qualquer ser humano que se encontra sob cuidados em saúde.
Desse modo, trata-se de pesquisa teórica que tem como objetivo desenvolver aportes teóricos que conferem solidez e justificativa para o novo ramo jurídico, o Direito do Paciente. Para tanto, partiu-se do entendimento de que a pesquisa teórica tem o propósito de construir e reconstruir teorias, quadros de referência, condições explicativas da realidade, polêmicas e discussões pertinentes (Adom; Hussein; Agyem, 2022). Com base no entendimento do que seja uma pesquisa teórica, sob o prisma metodológico, foi escolhido marco teórico para o estudo particular do objeto, procedimento que se distingue da pesquisa que se fundamenta numa revisão bibliográfica. Sendo assim, o procedimento metodológico adotado pela pesquisa teórica está baseado em referenciais relevantes para seu tópico de investigação (Organizing Academic Research Papers, 2022). Quanto ao marco teórico empregado nesta pesquisa, esse se divide dividiu em três eixos: (i) Cuidado Centrado no Paciente (CCP); (ii) vulnerabilidade acrescida do paciente; (iii) participação do paciente. Tratando-se do Cuidado Centrado no Paciente, empregou-se como referencial as formulações de Russell (2020), Sullivan (2019) e Brickley (2021). Epstein (2017). No que tange à vulnerabilidade acrescida, fundamentou-se nas pesquisas de Herring (2016), Delgado (2021) e Boldt (2019). Em relação à participação do paciente, empregou-se como base teórica os estudos de Halabi et al (2019) e Dumez y Pomey (2019).
O presente artigo se encontra estruturado em três partes: a primeira versa sobre CCP; a segunda da vulnerabilidade acrescida do paciente; e a terceira aborda a participação do paciente.
II. Cuidado Centrado no Paciente
O CCP é uma abordagem ainda em disseminação no Brasil, embora suas raízes teóricas remontem à década de sessenta do século XX, mais especificamente, à ideia de “Medicina centrada no paciente” (Hansson y Froding, 2021)2, contrapondo-se à “Medicina orientada pela doença” (Gusmano, Maschke, Solomon, 2019), e no conceito de relacionamento terapêutico, de Michael e Enid Balint (Eklund, 2019) e colaboradores (Russell, 2022). A expressão CCP é atribuída à Amelia Leino, que a empregou no artigo “Planning Patient Centred-Care“, de 1952 (Braillon y Taiebi, 2020). Nos anos setenta, o modelo biopsicossocial buscou enfatizar uma abordagem holística do cuidado, que deveria incluir não somente marcadores físicos da doença, e, paralelamente, tem-se o reconhecimento dos primeiros direitos dos pacientes, como o direito ao consentimento informado (Gusmano, Maschke, Solomon, 2019). Nas décadas seguintes, o CCP tornou-se fundamento da educação na área da saúde, um guia principiológico para as disciplinas do campo da saúde e foi incorporado ao desenho dos cuidados de instituições e de sistemas de saúde (Russell, 2022). No ano de 1986, o movimento do CCP avançou quando Harvey Picker estabeleceu a Fundação Picker, após testemunhar o cuidado recebido pela sua esposa no contexto de uma infecção incurável. Picker preconizou que os sistemas de saúde deviam tratar os pacientes como pessoas. A Fundação Picker e o Fundo Commonwealth criaram o Programa de CCP, popularizando o termo (Gusmano, Maschke, Solomon, 2019). Em 1993, o Instituto Picker em conjunto com a Harvard School of Medicine conduziu uma pesquisa sobre CCP e estabeleceu suas oito dimensões: respeito aos valores e preferências do paciente; apoio emocional; conforto físico; informação, comunicação e educação; continuidade e transição; coordenação do cuidado; envolvimento da família e amigos; e acesso ao cuidado (Australian Commission on Safety and Quality in Healthcare, 2011).
Em 2001, a Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos (anteriormente denominado de Instituto de Medicina), assentou que o CCP consiste em um objetivo para a melhoria dos cuidados em saúde no século XXI (Brickley, 2021). Foi o então Instituto de Medicina dos Estados Unidos que disseminou o léxico da centralidade do paciente no campo dos cuidados em saúde, ao situá-lo como um dos eixos do cuidado de alta qualidade, no Relatório “Crossing the Quality Chasm (Epstein et al, 2017). Com efeito, no Relatório, o Instituto clama por uma necessária reforma fundamental dos cuidados de saúde para garantir que todos os estadunidenses recebam cuidados que sejam seguros, eficazes, centrados no paciente, oportunos, eficientes e equitativos. O CCP, no Relatório, é definido como “cuidados que respeitem e respondam às preferências, às necessidades e aos valores individuais do paciente e garanta que os valores do paciente orientem todas as decisões clínicas”. Ao exemplificar uma prática de cuidado não centrada no paciente, o Relatório apresenta um caso no qual o paciente teve pouca assistência ou informação para ajudá-lo a entender as implicações das escolhas sobre sua cirurgia, radioterapia ou quimioterapia. Embora os profissionais tenham focado em problemas médicos imediatos, seu desconforto, medo e incerteza nunca foram abordados, o paciente recebeu poucos recursos para apoiá-lo (Institute of Medicine, 2001).
Nos Estados Unidos, o Patient Protection and Affordable Care Act estabeleceu a inclusão de resultados centrados no paciente sobre a qualidade e a experiência do cuidado (Chu et al, 2016). No Reino Unido, o General Medical Council enfatizou a centralidade do paciente nos padrões para Promoting Excellence in Medical Education, de 2015 (Hearn et al, 2019). Políticas e diretrizes baseadas na centralidade do paciente foram adotadas no Reino Unido, nos Estados Unidos, na Australia, na Nova Zelândia, na Noruega, bem como material sobre o tema foi produzido na União Europeia e na Organização Mundial da Saúde (Siouta y Olsson, 2020). Particularmente, no âmbito do National Health Service (NHS), do Reino Unido, preconiza-se a importância de garantir que as necessidades dos pacientes sejam centrais para o desenvolvimento de novos modelos de cuidado, incorporando o conteúdo do “National Voices ‘I statements’ “no planejamento do CCP; na implementação de orçamentos integrados de comissionamento personalizado/saúde pessoal; e apoiando a decisão do paciente. O NHS vem buscando incentivar o compartilhamento de boas práticas no planejamento de cuidados centrados no paciente, de modo a garantir que a decisão do paciente seja incorporada a novos modelos de cuidado em saúde (National Health System, 2022). No Brasil, não se verifica a introdução do CCP como um norte do Sistema Único de Saúde, mesmo tendo em conta que, com o passar do tempo, a abordagem do CCP tem sido estendida para além do nível do encontro clínico, sendo também introduzida nos sistemas de saúde (Russell, 2022).
O CCP pode ganhar distintos contornos conceituais na literatura especializada, mas três temas podem ser encontrados na ampla gama de conceituações do CCP, a saber: (a) participação e envolvimento do paciente; (b) relação entre o profissional de saúde e o paciente; (c) contexto no qual o cuidado em saúde é provido (Brickley, 2021). Nesse rumo, Mead e Bower, em uma revisão proeminente sobre a literatura relativa ao CCP, produziram um modelo alicerçado em cinco ideias-chave: (a) perspectiva biopsicossocial; (b) paciente como pessoa; (c) compartilhamento de poder e responsabilidade; (d) aliança terapêutica; (e) médico como pessoa (Russell, 2022). Ademais, o entendimento do que seja o CCP implica trazer à tona outras abordagens que se lhe contrapõem, tais como “cuidado centrado na doença”; “cuidado centrado no hospital”; “cuidado centrado na tecnologia” e “cuidado centrado no médico” (Epstein, 2017).
Os fundamentos éticos do CCP apontam para a sua essência ética, justificando-o por si só (Russell, 2022), ou seja, a despeito dos benefícios decorrentes da aplicação concreta do CCP, conferir centralidade ao paciente no encontro clínico é, por si só, um comando ético a ser observado pelos profissionais de saúde. Igualmente, os profissionais têm a obrigação ética de situar os interesses, as necessidades do paciente acima dos demais atores no encontro clínico, na medida em que o cuidado versa sobre o seu corpo e a sua saúde (Epstein, 2017). Assim sendo, Russell pontua que as disputas conceituais em torno do CCP podem negligenciar a sua dimensão moral fundamental, assim como o foco em habilidades comunicacionais e na mensuração da satisfação do paciente pode concorrer para se desconsiderar que o CCP é uma abordagem moralmente impregnada de comandos éticos. Notadamente, extraem-se do CCP, os seguintes comandos: (a) compartilhamento de poder e de controle entre o profissional e o paciente; (b) respeito pelos pacientes como seres únicos e a obrigação de prover o cuidado conforme os seus termos (Russell, 2022); (c) escuta ativa do paciente, que implica a busca por compreender seu mundo (Jakob et al, 2019); (d) prevalência dos objetivos de vida do paciente, quando cotejados com os objetivos clínicos, valorados pelo profissional (Sullivan, 2017).
O CCP promove interações entre profissionais e pacientes em que há o compartilhamento de informações; a busca pelos valores e preferências do paciente; o apoio ao paciente e aos familiares, quando for o caso, na tomada de decisão; a facilitação do acesso ao cuidado apropriado; e a promoção das habilidades do paciente para que possa seguir em seu processo terapêutico, o que envolve frequentemente mudança de hábitos para manter ou melhorar sua condição de saúde (Epstein et al, 2017). Pesquisas indicam que mais de 75% dos pacientes preferem o CCP (Noordman et al, 2019).
Altos níveis de CCP foram associados à melhoria dos resultados em saúde e da relação entre profissional e paciente, bem como ao aumento da satisfação do paciente e maior aderência ao tratamento. Nessa linha, estudos apontam que o CCP reduz os custos dos cuidados em saúde e as suas disparidades (Epstein et al, 2017). Pode-se asseverar que o CCP é valorizado por pacientes, profissionais e instituições de saúde (Brickley et al, 2021).
Um dos estudos mais notáveis sobre um modelo de aplicação do CCP foi publicado em 2014 por Scholl et al. Esse modelo abarca 15 dimensões do CCP. Um estudo de 2019 propõe outro modelo de aplicação do CCP para general practioners, formulado por Brickley et al. Assim, no que tange à aplicação do CCP no âmbito da prática dos general practioners, no Reino Unido, verificou-se que a falta de ferramentas de apoio para demandas cotidianas inibe a adoção da Tomada de Decisão Compartilhada, componente fundamental do CCP. Ademais, a pressão feita sobre os médicos para que atendam muitos pacientes compromete a sua prática do CCP (Brickley et al, 2021).
No âmbito da formação dos profissionais de saúde, há manifestações no sentido de que a educação Médica deveria ser mais centrada no paciente. A Academy of Medical Educators, em 2017, adotou uma concepção de centralidade do paciente que se desdobra em cinco valores centrais: habilidades de comunicação e interpessoais; profissionalismo; prática baseada no aprendizado e na melhoria; conhecimento médico e sistema baseado na prática. Com efeito, a educação médica alicerçada na centralidade do paciente pressupõe uma abordagem educacional que seja sobre os pacientes, com os pacientes e para os pacientes (Hearn, 2019).
Estudo de Noordman et al (2019), sobre comunicação centrada no paciente e empatia, apontou ambos como componentes-chave para o CCP, em consequência destacou que a capacitação em comunicação tem efeito positivo na comunicação centrado no paciente, empatia e habilidades relacionais. Sendo assim, constatou que a capacitação de residentes em comunicação centrada no paciente e empatia pode promover a melhoria do CCP (Noordman et al, 2019).
Diante do exposto, neste estudo entende-se o CCP como o cuidado provido conforme a perspectiva do paciente, a fim de garantir o seu envolvimento, e ter como resultado a sua agência (Noordman et al, 2019). Com efeito, o CCP é marcado eticamente pelo compromisso dos profissionais de saúde com a consideração do paciente como sujeito de direitos, que devem ser os norteadores do processo de tomada de decisão. Portanto, no que tange ao CCP e o Direito do Paciente, a abordagem que situa o paciente na centralidade do cuidado é um dos seus alicerces teóricos, que conferem fundamento para reconhecer o paciente como titular de direitos que deverão ser os balizadores ético-jurídicos do encontro clínico.
III. Vulnerabilidade acrescida do paciente
A vulnerabilidade é parte inerente de todos os seres humanos (Herring, 216), todas as pessoas são vulneráveis e tal condição implica ser frágil e suscetível de sofrer um dano, físico ou psíquico. Logo, a condição de vulnerável é ontologicamente intrínseca aos seres humanos (Andorno, 2016). A vulnerabilidade humana deriva do fato de que os seres humanos são essencialmente gregários, assim, um ser depende do outro para a manutenção do seu bem-estar físico e psíquico, por essa razão, se expõem a serem atingidos mutuamente. Com efeito, a vulnerabilidade expressa a interdependência humana e a sua característica relacional (Herring, 2016). Desde o nascimento, os seres humanos constroem sua identidade a partir da interação com o outro, sendo a interdependência uma característica inconteste das relações humanas, que se interconecta com a precariedade da vida, que exprime o fato de que nossas vidas, em alguma medida, estão nas mãos do outro (Butler, 2015). A caracterização da vulnerabilidade recai sobre o risco de dano e as habilidades individuais para evitá-lo (Albuquerque y Paranhos, 2010), nos recordando da nossa corporeidade e fragilidade (Delgado, 2021).
A concepção de vulnerabilidade universal se conjuga com a percepção empírica de que determinados grupos, ou indivíduos, apresentam uma condição de vulnerabilidade acrescida, em razão de particularidades atinentes ao próprio indivíduo ou grupo, ou ao contexto no qual se encontram. Ademais, é patente que asseverar a vulnerabilidade universal de todos os seres humanos não significa que todos sejam igualmente vulneráveis. Existem critérios para aferir a vulnerabilidade no caso concreto, desse modo, consoante Herring, uma pessoa é vulnerável se três fatores estão presentes: a) se encontra diante de risco de dano; b) não detém recursos para evitar que o risco de dano se materialize; c) não teria meios adequados para responder ao dano, caso o risco se materializasse (Herring, 2016). Assim, aqueles que estão em uma condição aumentada de vulnerabilidade se encontram em situação com maior risco de dano e diminuta possibilidade de se proteger quanto ao risco e de responder ao dano, caso ele ocorra.
Nos cuidados em saúde, a vulnerabilidade é um aspecto fundamental (Delgado, 2021). Tratando-se do paciente, particularidades físicas e emocionais fazem com que busque um profissional de saúde para expor sua vida privada e seu corpo, sendo uma situação no qual há uma abertura específica, não comumente encontrada em outras relações, para o outro. Comumente, quando se procura um profissional de saúde, a pessoa sente algo, seja físico ou psíquico, o que lhe deixa insegura, angustiada e estressada, afetando, assim, sua força interna para resistir a eventual ameaça ou conduta que possa acarretar-lhe dano. Caso o paciente sofra algum tipo de dano – tratamento discriminatório, toque inadequado no corpo ou ingestão de medicamento equivocadamente prescrito – os meios existentes para detectar que está sendo alvo de uma conduta inapropriada do profissional de saúde e os mecanismos para responder a essas condutas são custosos, pois há uma máquina institucional a ser transposta pelo paciente.
Com efeito, é fato que o paciente apresenta uma vulnerabilidade acrescida quando cotejado com condições ordinárias da nossa vida. Essa vulnerabilidade particular do paciente se correlaciona com a concepção de Herring de que a vulnerabilidade deriva de três fontes primárias: (a) a natureza carnal do nosso corpo nos faz vulneráveis; (b) a incapacidade de tomar decisão nos faz vulneráveis; (c) nossa instabilidade emocional (Herring, 2016). Nessa linha, o paciente apresenta uma condição aumentada de vulnerabilidade nesses três âmbitos, quanto ao seu corpo; à tomada de decisão sobre seus cuidados em saúde; e às questões emocionais que permeiam a sua condição de saúde específica. O modelo tríade de particular vulnerabilidade acrescida do paciente foi formulado por Boldt (2019): o paciente apresenta vulnerabilidade acrescida, física, emocional e cognitiva.
Embora a condição de paciente seja por si só um fator que incrementa a vulnerabilidade universal, há uma gradação de vulnerabilidade a depender da especificidade do paciente ou do contexto em que se encontra. Sem objetivar aprofundar os variados condicionantes que podem concorrer para o aumento da vulnerabilidade dos pacientes, salienta-se que pacientes hospitalizados por longos períodos ou doenças agudas apresentam uma situação agravada de vulnerabilidade. Esses pacientes, notadamente quando não conseguem falar, andar ou se encontram desorientados, tornam-se extremamente dependentes dos profissionais de saúde, estando totalmente à mercê dos seus cuidados, inclusive para o atendimento de suas necessidades básicas. Na mesma linha, pacientes em situação de terminalidade de vida apresentam necessidades psicológicas únicas, bem como vulnerabilidades particulares (Lobont y Mladin, 2018). Essa condição de fragilidade extrema torna os pacientes mais suscetíveis ao comportamento do profissional e à sua comunicação (Andorno, 2016). Literatura especializada aponta que há numerosos problemas de comunicação entre o profissional de saúde e paciente no contexto da terminalidade da vida, afetando o seu cuidado (Lobont y Mladin, 2018). O reconhecimento dessa condição é essencial para que o profissional se diligencie mais acerca de como está tratando o paciente, notadamente quanto ao seu nível de empatia.
A vulnerabilidade acrescida do paciente não se condiciona apenas à sua doença3, mas também à relação com o profissional de saúde e com a instituição de saúde. A vulnerabilidade do paciente se conecta com a assimetria de poder e de informação presente na relação com o profissional de saúde (Andorno, 2016), o qual pode atuar, mesmo inconscientemente, oprimindo o paciente e concorrendo para o agravamento da sua fragilidade. No mesmo sentido, enquadrar determinado paciente como vulnerável em razão apenas do grupo social ou da sua condição de saúde e, conseguintemente, mitigar a sua capacidade decisional ou suprimi-la. Isso consiste em conduta eticamente reprovável, uma violação do direito do paciente à autodeterminação e do direito de não ser discriminado (Boldt, 2019).
Cabe salientar que o fato de se reconhecer que o paciente apresenta uma condição específica de vulnerabilidade não pode implicar a adoção de comportamentos paternalistas e a presunção de que não detém habilidade decisional. A vulnerabilidade pode ser conciliada com o respeito à autonomia pessoal do paciente, enquanto condição fundamental da sua experiencia subjetiva (Magrí, 2019). Desse modo, a assunção da vulnerabilidade impõe ao profissional, às instituições e aos sistemas de saúde o dever de promover a sua autonomia pessoal e a sua autodeterminação, notadamente por meio de mecanismos e estratégias validados para essa finalidade. Com efeito, verifica-se que a vulnerabilidade acrescida dos pacientes pode subestimar os seus recursos psíquicos e cognitivos e superestimar o papel dos profissionais de saúde. Em consequência, têm-se a objetificação do paciente e a desconsideração do seu conhecimento experiencial (Boldt, 2019). Nessa linha, Delgado destaca que a classificação de determinado grupo como vulnerável pode conduzir à sua discriminação ou estereotipo (Delgado, 2021), por isso há que se ter cautela ao se empregar o conceito.
A participação, o engajamento e a ativação do paciente não podem ser negados tão somente com base em sua vulnerabilidade. Ao revés, o que confere força ao paciente para participar ou se engajar em seu cuidado é o reconhecimento da sua fragilidade e da necessidade de apoio, o que na nossa sociedade costuma ser visto como “fraqueza e passividade”. Assim, a vulnerabilidade acrescida do paciente não pode ser motivo para substituir a sua decisão por familiares ou profissionais de saúde, mas sim é o impulsionamento na direção da conduta ativa dos profissionais de saúde em prol do seu empoderamento.
Aduz-se, ainda, que o julgamento feito pelo profissional de que o paciente é vulnerável influencia a sua própria autopercepção acerca da sua fragilidade, podendo incrementá-la ou mitigá-la. Com efeito, a dependência do paciente em relação ao profissional em razão de necessitar da sua ajuda, o torna aberto para recebê-la, mas também para sofrer danos nesse contexto (Angel, 2020). O fato de precisar receber cuidados, o torna mais suscetível a ser afetado física e psiquicamente pelo comportamento do profissional. Dessa constatação extrai-se o comando ético dirigido ao profissional de reconhecimento da dignidade inerente do paciente enquanto ser humano, o que pressupõe o entendimento dos seus estados mentais e situação, ou seja, implica uma conexão empática.
Vulnerabilidade física do paciente
No corpo, são vivenciados o bem-estar, o florescimento humano e as emoções, que não são construtos meramente vinculados ao corpo, mas sim consistem em experiências da corporeidade propriamente dita (Herring, 2017). A corporeidade é a dimensão mais importante da interação com a mente (Lobont y Mladin, 2018). A doença é um sinal visível de vulnerabilidade física do paciente, o corpo enfermo é suscetível a infecção, danos associados aos cuidados, efeitos colaterais de medicamentos, dor, perda muscular e outros. O paciente tem insegurança sobre o significado e o status do seu corpo (Churchill, Fanning, Schenck, 2014). A doença torna patente a nossa condição corporal, ou seja, a determinação de nossa identidade e autopercepção a partir do nosso corpo, deixando evidente os nossos limites e finitude (Delgado, 2021). A experiência do corpo/eu é envolta em múltiplas dimensões, tais como sensorial, afetiva e psicológica (Lobont y Mladin, 2018).
Como visto, o profissional de saúde tem um papel fundamental na mitigação da fragilidade do paciente. Diante de tal contexto, quando o profissional evita o toque e o exame físico, esse afastamento pode impactar negativamente a relação do paciente com o próprio corpo. O emprego em excesso de tecnologias na Medicina pode apartar o profissional da interação com o paciente, afetando a comunicação empática, verbal ou não verbal.
Vulnerabilidade emocional
A vulnerabilidade física é acompanhada de vulnerabilidade emocional, usualmente, o paciente se sente angustiado, estressado e ansioso, sentindo-se dependente de familiares, cuidadores e dos profissionais de saúde (Delgado, 2021). O paciente vivência stress, incerteza, quebra das suas atividades diárias, afastamento do lazer, distanciamento de grupos sociais, interrupção do trabalho, estigma e preconceito, a depender da enfermidade. Ainda, acresce-se a autopercepção do paciente como frágil e dependente (Boldt, 2019), e quando o corpo adoece, a imagem corporal pode ser afetada, o que acarreta efeitos emocionais para o paciente.
No caso do paciente hospitalizado, esse é um ambiente desconhecido e impessoal. O cotidiano é completamente alterado e a rotina é a hospitalar (Boldt, 2019). Por exemplo, paciente idosa tinha uma rotina que lhe conferia bem-estar e segurança, que implicava tomar banho no final da tarde, ao ser hospitalizada, e equipe de saúde determinou seu horário de banho para todas as manhãs, o que deixou a paciente abatida e desorientada diante da mudança que para ela era significativa. Ainda, no ambiente hospitalar, mesmo que o paciente não esteja internado, há fragilidade diante das regras hospitalares (Boldt, 2019). A dinâmica do processamento do seu cuidado é estranha para ele, mormente quando já se encontra vulnerável fisicamente, com dor, mal-estar ou em sofrimento psíquico. O ambiente hospitalar é burocrático e não amigável para o paciente.
Na internação, há a retirada das suas roupas, passam a usar vestes que expõem o seu corpo (Jeffrey, 2020), e dos pertences pessoais do paciente, a perda do contato com familiares e amigos, bem como a quebra da rotina. O paciente passa a ter que se relacionar com variados profissionais de saúde e a depender da enfermidade conta com um médico especialista. Essa nova interação social não é fácil para o paciente, pois se sente dependente de pessoas desconhecidas, seja do ponto de vista do cuidado em saúde propriamente dito ou para manter algum tipo de contato com uma interação humana. O paciente apresenta um desejo de conexão, provocado pela angústia decorrente da sua condição de saúde. Estudos demonstram associação entre o aumento do estresse e a necessidade de conexão. Isso conduz à sua necessidade aumentada de conexão social e dependência do profissional de saúde, mormente quando está hospitalizado (Hojat, 2016). Assim, o paciente deposita enorme confiança nesses profissionais, esperando respeito, competência profissional, cuidado, relação adequada e prudência. Ainda, espera que os profissionais não os prejudiquem, bem como não tenham a sua fragilidade aumentada pelo paternalismo e por outros modos de perpetuação da dependência (Boldt, 2019).
Vulnerabilidade cognitiva
A vulnerabilidade cognitiva diz respeito ao entendimento do paciente sobre informações relativas à sua condição de saúde e ao contexto no qual os seus cuidados são providos. A vulnerabilidade cognitiva se entrelaça com o conceito de literacia em saúde, o qual sob o prisma individual é designado como o grau em que os indivíduos têm a habilidade para buscar, entender e usar informação e serviços para tomar decisões sobre saúde informadas e adotar ações para si e outros. Pacientes com baixo grau de literacia em saúde frequentemente não conseguem compreender informação sobre suas medicações, as rotulagens de alimentos relacionados à sua dieta restritiva e quando devem buscar serviços de saúde, afetando sua condição de saúde (Demarco y Nystrom, 2010).
Em casos de doenças severas, por exemplo, o paciente apresenta vulnerabilidade cognitiva incrementada, porquanto é difícil a compreensão da doença, o prognóstico, os cursos de ação, os impactos no seu corpo, na rotina diária e no seu projeto de vida (Boldt, 2019).
A vulnerabilidade cognitiva se atrela à efetivação da autodeterminação do paciente, notadamente no que tange ao exercício do seu direito à informação, do direito ao consentimento informado e do direito de participar da tomada de decisão (Andorno, 2016). Os pacientes dependem dos profissionais para acessar informação sobre a sua enfermidade, como os cursos de ação possíveis e suas consequências concretas para aquele paciente em específico. Assim, tendo em conta a vulnerabilidade cognitiva, é imperioso que os profissionais utilizem meios para promover sua autonomia e empoderamento. É papel do profissional de saúde promovê-las diante da vulnerabilidade acrescida do paciente e não adotar condutas paternalistas (Boldt, 2016).
Sob a ótica da vulnerabilidade cognitiva, crianças, pessoas idosas e pessoas com transtornos mentais são comumente enquadradas como incapazes de entender, de sopesar benefícios e riscos e de participar da tomada de decisão (Boldt, 2016). Embora pacientes que se enquadrem em tais grupos possam apresentar uma vulnerabilidade cognitiva acrescida, tal constatação, como dito acima, não pode ensejar a adoção de medidas paternalistas de supressão do seu direito de participar da tomada de decisão acerca dos seus cuidados em saúde.
Em síntese, Boldt (2019) chama atenção para o fato de o conceito de vulnerabilidade não ter papel central na Ética Médica ou na Bioética Clínica. A vulnerabilidade é uma condição do paciente e que possui uma essência ética intrínseca, na medida em que o situa numa posição de estar mais frágil e propenso a sofrer danos, abusos e outras condutas que lhes causam dor ou sofrimento. Portanto, a vulnerabilidade é uma condição humana que faz emergir obrigações, que são extraídas dos direitos dos pacientes, no sentido de o profissional estar atento para as necessidades e as fragilidades do paciente. Nessa perspectiva, a vulnerabilidade clama por um comportamento do profissional consentâneo com os direitos dos pacientes, ancorados na dignidade inerente do paciente.
Por fim, a vulnerabilidade acrescida do paciente impele à estruturação de arcabouço normativo próprio, destinado a mitigar a sua fragilidade no contexto dos cuidados em saúde. O Direito do Paciente tem o condão de conferir uma linguagem ético-jurídica que legitime os pleitos dos pacientes em face do profissional de saúde e das instituições, mitigando suas vulnerabilidades física, emocional e cognitiva.
IV. Participação do paciente
A ideia de que o paciente tem o direito de participar do seu cuidado e das decisões que o afetam se conecta com o lema “Nada sobre nós, sem nós”, disseminado pelo movimento dos direitos das pessoas com deficiência. Segundo Charlton (2000), essa expressão foi ouvida por ele pela primeira vez na África do Sul, em 1993, quando foi utilizada por Michael Masutha e William Rowland em eventos relacionados ao movimento dos direitos das pessoas com deficiência. O autor ressalta que a força do lema está no fato de expressar simultaneamente muitos tipos de opressão vivenciados pelas pessoas com deficiência e a oposição a essas opressões, notadamente no que tange à voz e ao controle das pessoas com deficiência. Dessa forma, o lema implica o envolvimento das pessoas com deficiência em todos os assuntos que lhes afetam. O lema foi incorporado ao movimento pelos direitos dos pacientes e associações de pacientes (Chu et al, 2016), enquanto expressão que captura a objetificação a que foram submetidos ao longo do tempo, enquanto objeto de cura, e da intervenção médica, com a consequente negação da sua voz e participação. O lema “Nada sobre nós, sem nós” se associa à concepção de “paciente-participante”, que traz a ideia de que além de sujeito de direitos, o paciente é participante. Donald D. Berwick, Presidente Emérito do Institute for Healthcare Improvement, dos Estados Unidos, ao elencar as seis dimensões da qualidade do cuidado, e, particularmente, o CCP, empregou o lema “Nothing about me Without me” (Berwick, 2022).
Retomando as concepções de voz e de agência sobre a própria vida e saúde que derivam do lema “Nada sobre nós, sem nós”, assinala-se que o conceito de paciente-participante implica a visão de que o paciente é agente não apenas nos cuidados em saúde, mas também da sua saúde, o que implica a construção em parceria com o profissional do que consiste saúde para aquele paciente, em específico (Sullivan, 2017). Essa construção envolve a assunção de que o conhecimento experiencial do paciente tem valor único em tal construção. O termo “conhecimento experiencial” foi introduzido por Borkman, em 1976, que o definiu como o conhecimento derivado da experiência pessoal com determinado fenômeno, emergindo da experiência de se viver continuamente com um problema (Blume, 2017). O conhecimento experiencial do paciente se refere ao seu conhecimento único e à experiência em lidar com fatores que influenciam positiva ou negativamente sua vivência com a doença e o processo de cuidado (Smit et al, 2020).
A concepção de paciente-paciente emerge dos movimentos, iniciados na década de setenta, na direção da superação do modelo paternalista de cuidados em saúde, mormente dos relacionados aos pacientes com transtornos mentais. Quanto ao modelo paternalista, nesse “o médico tem um papel central: ele faz o diagnóstico e decide sobre o plano de cuidado, maneja a equipe de saúde de acordo com os objetivos por ele estabelecidos e provê o cuidado ao paciente.” (Dumez y Pomey, 2019: 34). Nos anos oitenta, a emergência do modelo do Cuidado Centrado na Família e no Paciente e a necessidade de lidar com repercussão sistêmica da crise da AIDS endossaram as críticas ao modelo paternalista, notadamente quanto ao fato de que não provia um marco adequado para manejar as dimensões psicossociais da saúde individual (Dumez y Pomey, 2019). Em complemento, a ênfase na cura que foi tão bem-sucedida no século XX não se mostra mais adequada em face das doenças crônicas, e sua prevenção e manejo constituem o desafio do século XXI (Sullivan, 2017).
Com efeito, a efetiva parceria com os pacientes tem seu reconhecimento expandido como um fator-chave para a melhoria da formulação, provisão e organização de políticas e serviços de saúde. A participação do paciente agrega, por meio de seu conhecimento experiencial único, insights, visões e tendências singulares (Zelmer, 2010). Considerando as evidências que apontam os benefícios para os sistemas de saúde derivados da participação do paciente, vários programas e estratégias vêm sendo implementados com vistas a aumentar a consciência e o empoderamento dos pacientes, para que participem do processo de tomada de decisão de forma mais ativa e efetiva. Essas iniciativas se relacionam com a literacia em saúde, o estímulo de apoio ao auto manejo e as melhorias do envolvimento do paciente na tomada de decisão sobre seus tratamentos (Souliotis et al, 2018).
Partindo da premissa ético-jurídica de que o paciente é o protagonista do cuidado em saúde, abordagens e estratégias distintas vêm sendo adotadas, visando implementar na prática cotidiana do cuidado essa premissa. Na literatura especializada, são encontradas abordagens diferentes que propõem, em linhas gerais, conferir centralidade ao paciente e lhe dar voz. Nessa linha, estudo de Halabi et al sobre a participação do paciente e conceitos correlatos, como “educação do paciente”, “empoderamento do paciente”, “envolvimento do paciente”, “engajamento do paciente”, “cuidado centrado no paciente”, “ativação do paciente” e “parceria do paciente”, aponta que para alguns autores esses conceitos são complementares e para outros, são independentes. Embora todos sejam amplamente utilizados, não há consenso sobre seus significados e o que os distinguem. Inclusive os autores ressaltam que a falta de um acordo acerca dos conteúdos desses termos prejudica seu desenvolvimento e implementação na prática dos cuidados em saúde. Assim, fazem uma escolha pela expressão “participação do paciente” (Halabi et al, 2019). Sob essa perspectiva, Longtin et al (2010) assinalam que vários termos, “colaboração do paciente”, “envolvimento do paciente”, “parceria”, “empoderamento do paciente” e “cuidado centrado no paciente” são empregados como sinônimos de participação do paciente (Longtin et al, 2010).
Neste estudo, não se tem como desiderato tratar dos diversos conceitos apresentados, o objetivo é demonstrar que os sistemas de saúde vêm progressivamente alterando a sua perspectiva em relação ao paciente, situando-o na centralidade do cuidado e endossando a visão do modelo biopsicossocial (Halabi et al, 2019). Essa alteração sistêmica e, no nível micro, do encontro clínico, se associa ao comando ético-jurídico no sentido de que os pacientes têm o direito de participarem de todas as decisões que lhes dizem respeito, não apenas as tomadas em seus cuidados em saúde, mas também as deliberações concernentes a políticas e programas públicos.
Sendo assim, tendo em conta o escopo deste estudo, tem-se como foco tratar da participação do paciente. Segundo Souliotis et al (2018), a participação do paciente consiste no processo que lhe permite ser parte integral do curso da tomada de decisão que influencia a sua vida. Essa participação pode ser desdobrada em três níveis: (a) nível individual ou micro; (b) nível meso; (c) nível macro.
No nível individual ou micro, o paciente participa como membro da equipe de saúde nas decisões que afetam diretamente o seu cuidado (Souliotis, 2018). Nesse nível, é importante que o profissional despenda certo tempo com o paciente para que possam trocar informação, dialogar e acordar acerca de como será a sua participação. É importante que o profissional informe o paciente para que esse adquira o conhecimento acerca da sua condição de saúde, que o permita efetivamente ser um agente do seu cuidado. No mesmo sentido, a escuta ativa há que estar presente para que o profissional esteja apto a apreender o conhecimento experiencial, as necessidades, valores, vontade e preferências do paciente, componentes fundamentais do processo de tomada de decisão. Na participação micro, o profissional precisa compartilhar seu poder e controle (Halabi et al, 2019), promovendo a autonomia pessoal do paciente e a sua agência. Em síntese, a participação do paciente é operacionalizada por meio da implementação das seguintes ações, em um processo relacional: (a) educação e aprendizado do paciente; (b) compartilhamento de informação e de conhecimento; (c) compartilhamento de poder e de responsabilidades (Halabi et al, 2019).
A parceria no cuidado é o ápice da participação do paciente no nível micro, pois consiste em uma relação colaborativa baseada na confiança, diálogo aberto, consideração mútua e acordo sobre os objetivos do tratamento, mútuo entendimento sobre os papeis de cada um dos participes da parceria e engajamento ativo. Para tanto, é preciso que o profissional de saúde adote determinadas perspectivas como: (a) o modelo biopsicossocial, que leva em conta todas as questões trazidas pelo paciente e não apenas as de caráter biomédico; (b) consideração do paciente como uma pessoa única, exercendo sua capacidade empática para apreender seus estados mentais e situação particular; (c) adoção de uma atitude de parceria no cuidado que empodere o paciente, conferindo-lhe elementos para manejar o seu autocuidado; (d) detenção de conhecimento baseado nas melhores evidências científicas; (e) desenvolvimento de habilidades comunicacionais (verbais e não verbais): (f) capacidade para prover apoio físico e emocional (Halabi et al, 2019).
Segundo o Modelo de Montreal, da Universidade de Montreal, de “Parceria no Cuidado”, essa parceria se fundamenta nos seguintes eixos, necessidade de: a) empoderar os pacientes para que tomem decisões informadas e livres; b) reconhecer o valor do conhecimento experiencial do paciente; c) desenvolver as habilidades do paciente durante o processo de cuidado; d) considerar o paciente como um ator do cuidado; e) assumir que o objetivo do processo de cuidado é a realização do projeto de vida do paciente, mais do que um objetivo curativo singular. Com efeito, segundo o Modelo de Montreal, entende-se como central no conceito de Participação do Paciente a atribuição de valor ao conhecimento experiencial do paciente, que deriva da sua experiência com a sua enfermidade, da navegação no sistema de saúde e dos impactos em vários aspectos da sua vida e da de seus familiares. O Modelo de Montreal leva em consideração três aspectos: (a) o conhecimento experiencial do paciente e o de seus familiares; (b) o paciente é considerado como membro da equipe de saúde; (c) a tomada de decisão do paciente nos assuntos relacionados à sua saúde deve ser promovida (Dumez y Pomey, 2019).
Conforme a literatura especializada, esperam-se as seguintes consequências positivas da participação do paciente: melhores resultados em saúde (melhor controle da condição crônica, diminuição da hospitalização e readmissão, melhora da condição emocional e física e a habilidade para manter as atividades de vida diária); maior satisfação do paciente (melhoria da qualidade de vida em geral e da relação com o profissional de saúde); incremento da própria participação do paciente (aumento da experiência que impacta positivamente seu empoderamento, ativação da responsabilidade pessoal, efetivação da Tomada de Decisão Apoiada e maior uso dos serviços de saúde destinados às doenças crônicas) e melhora dos sistemas de saúde (Halabi et al, 2019).
A participação do paciente que pressupõe alçá-lo a uma posição de parceria com o profissional de saúde e conferir importância ao seu conhecimento experiencial fornece o solo para que os direitos dos pacientes sejam cultivados no cotidiano do cuidado. A reconfiguração do papel do paciente no cuidado, amplificando a sua voz e seu protagonismo da tomada de decisão, aporta consistência para se advogar o direito do paciente a participar das decisões sobre o seu cuidado, o direito de ser informado e o direito ao consentimento informado, dentre outros direitos dos pacientes.
V. Conclusões
A construção de um novo ramo jurídico é gradual e leva tempo, o que não seria diferente no caso do Direito do Paciente. Embora avanços notáveis estejam sendo realizados com esse intuito, ainda é preciso que mais produções acadêmicas sejam levadas a cabo de modo a concorrer para sua consolidação, notadamente em razão da importância que representa para pacientes em todas as regiões de globo. Desse modo, este artigo objetivou contribuir com aportes teóricos produzidos em outros campos do saber para a fundamentação do Direito do Paciente, mormente por meio do aprofundamento de abordagens que se articulam com pesquisas sólidas desenvolvidas ao longo dos anos na esfera da saúde. Com efeito, viu-se que o Direito do Paciente tem como fundamento a centralidade do paciente no cuidado, rechaçando a visão tradicional de cuidado focado na doença ou no profissional de saúde, contrapondo-se, assim, ao modelo paternalista que ainda impera na prática clínica. No mesmo sentido, o reconhecimento de que o paciente apresenta uma vulnerabilidade acrescida impele à adoção de comandos ético-jurídicos, que consistem nos direitos dos pacientes, visando proteger o paciente de abusos e de tratamentos indignos. Por fim, tem-se a participação do paciente que reconfigura seu papel, conferindo-lhe protagonismo e amplificando a sua voz. Portanto, o Direito do Paciente é um novo ramo alicerçado em construtos teóricos interdisciplinares, o que demonstra a sua riqueza teórico-prática e abertura para a complexidade do encontro clínico.
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1 Profesora de Bioética de la Universidade de Brasilia. Pós doctorado en Derechos Humanos. Doctorado en Ciencias de la Salud. Coordinadora del Observatorio de Derechos del Paciente del Programa de Bioética de la Universidad del Brasília. Correo electrónico: alineaoliveira@hotmail.com ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-5568-0790
2 Essa expressão foi atribuída por Michael Balint ao Professor Millar, da Universidade de Aberdeen.
3 A vulnerabilidade também pode advir de fatores sociais, econômicos, culturais e de outras esferas que não são objeto deste estudo.