Barreiras do acesso à saúde e vulnerabilidade da população trans: uma revisão integrativa de literatura

Barriers to access to health and vulnerability of the trans population: an integrative literature review

Débora de Jesus Barbosa1; Emerson Fernando Rasera2;

Noelle Tavares Ferreira3; Flávia do Bonsucesso Teixeira4

DOI: https://doi.org/10.37767/2591-3476(2024)07

Fecha de envío: 18.06.2023

Fecha de aceptación: 18.07.2023

RESUMO:

Introdução: Apesar dos avanços recentes, a população trans ainda enfrenta desafios ao pleno direito à saúde. Objetivo: Analisar as barreiras para o acesso da população trans aos serviços de saúde presentes na literatura. Método: Revisão integrativa, nas bases SciELO, PubMed e EMBASE, de artigos empíricos, publicados entre 1998 e 2022, em português, inglês e espanhol, realizados em países selecionados, com participantes de 18 a 65 anos. Resultados: 57 artigos selecionados e seis categorias de barreiras identificadas: ausência de políticas inclusivas; inadequação das redes de serviços; oferta dos serviços de saúde incompatível com as necessidades da população trans; falta de capacitação dos profissionais de saúde; transfobia nos serviços de saúde; e falta de informação e estigma no cuidado em saúde. Conclusões: Pessoas trans estão sujeitas à vulnerabilidade individual, social e programática. O predomínio de barreiras institucionais indica a necessidade de ações governamentais que garantam o direito à saúde dessa população.

RESUMEN:

Introducción: A pesar de los avances recientes, la población trans aún enfrenta desafíos en su pleno derecho a la salud. Objetivo: Analizar las barreras de acceso de la población trans a los servicios de salud presentes en la literatura. Método: Revisión integrativa, en las bases de datos SciELO, PubMed y EMBASE, de artículos empíricos, publicados entre 1998 y 2022, en portugués, inglés y español, realizada en países seleccionados, con participantes entre 18 y 65 años. Resultados: 57 artículos seleccionados y seis categorías de barreras identificadas: falta de políticas inclusivas; insuficiencia de redes de servicios; oferta de servicios de salud incompatibles con las necesidades de la población trans; falta de formación de los profesionales de la salud; transfobia en los servicios de salud; y falta de información y estigma en la atención sanitaria. Conclusiones: Las personas trans están sujetas a vulnerabilidad individual, social y programática. El predominio de barreras institucionales indica la.

ABSTRACT

Introduction: Despite recent advances, the trans population still faces challenges to their full right to health. Objective: To analyze the barriers to access for the trans population to health services present in the literature. Method: Integrative review, in the SciELO, PubMed and EMBASE databases, of empirical articles, published between 1998 and 2022, in Portuguese, English and Spanish, carried out in selected countries, with participants aged 18 to 65 years. Results: 57 articles selected and six categories of barriers identified: lack of inclusive policies; inadequacy of service networks; provision of health services incompatible with the needs of the trans population; lack of training of health professionals; transphobia in health services; and lack of information and stigma in health care. Conclusions: Trans people are subject to individual, social and programmatic vulnerability. The predominance of institutional barriers indicates the need for government actions to guarantee the right to health of this population.

PALAVRAS-CHAVES: Transexualidade; Barreiras ao Acesso aos Cuidados de Saúde; Revisão; Vulnerabilidade em Saúde.

PALABRAS CLAVE: Transexualidad; Barreras de Acceso a los Servicios de Salud; Revisión; Vulnerabilidad en Salud.

KEY WORDS: Transsexualism; Barriers to Access of Health Services; Review; Health Vulnerability.

I. Introdução

Nas duas primeiras décadas do século XXI, a discussão sobre a transexualidade alcançou maior centralidade no campo da saúde, impulsionada também pela luta dos movimentos sociais no enfrentamento das iniquidades cotidianas demonstrando a necessidade social e histórica do aprofundamento da temática. Em conjunto com o interesse social, a construção de políticas públicas com ênfase nos marcadores sexuais e de gênero têm buscado assegurar à população LGBT os direitos básicos à saúde (Lima et al., 2020; Miskolci et al, 2022; Rocon et al., 2019a). Apesar disso, essa população ainda enfrenta inúmeras dificuldades e barreiras para acessar o sistema de saúde. Entre a população LGBT, as pessoas trans são o grupo mais afastado dos contextos de cuidados, enfrentando as maiores dificuldades em suas tentativas de acesso ao sistema de saúde (Santos, 2022).

Tais dificuldades podem ser explicadas, em parte, pela estruturação dos serviços de saúde cuja lógica cis-heteronormativa prevê a linearidade entre sexo, gênero e orientação sexual. Sendo assim, quando uma pessoa trans adentra o sistema de saúde, pode ocor- rer uma desestabilização dos padrões binários e cisnormativos que normalmente orientam as práticas em saúde (Gonçalves & Franco, 2019). Nesse cenário, ainda que existam algumas ações e políticas públicas com o objetivo de garantir a equidade em saúde, essas não se mostraram suficientes para assegurar à população trans um cuidado em saúde livre de preconceitos e discriminações (Depret et al., 2020).

Além disso, deve-se considerar que, apesar de a população trans possuir uma série de demandas específicas de saúde mental e física ligadas ao processo de transição, ela também possui demandas que estão para além da afirmação de gênero. Ou seja, pessoas trans e travestis buscam os serviços de saúde para atender necessidades de saúde e são impedidas de acessar esses cuidados, o que traz consequências diretas para a qualidade de vida dessa população (Santos et al., 2014; Stroumsa, 2014).

Apesar dos avanços crescentes das pesquisas, políticas públicas e serviços específicos para a população trans, ainda existem muitas dificuldades que precisam ser superadas. Considerando o contexto brasileiro, por exemplo, percebe-se que o país não possui linhas de cuidado para a saúde de pessoas trans, adotadas pelo Ministério da Saúde, para orientar a implementação de políticas públicas, diferentemente de outros países considerados como referências, como Espanha e Canadá, que dialogam com as orientações da World Professional Association for Transgender Health (WPATH) (Santos, 2022). A ausência de uma orientação centralizada produz muitos modos dos serviços organizarem seus fluxos e diferentes modos de ofertar cuidado para a população trans, modos esses que nem sempre são os mais adequados (Oliveira & Romanini, 2020; Miskolci & Pereira, 2022).

Levando em conta a experiência precária de acesso aos serviços de saúde generalistas e específicos por parte da população trans, mostra-se importante uma compreensão mais ampla e aprofundada acerca das barreiras que perpassam as experiências de acesso e acolhimento a essa população. Sendo assim, entender melhor os desafios e as dificuldades enfrentadas por pessoas trans e travestis, nos cenários internacional e nacional, pode ser uma ferramenta chave para o fortalecimento de políticas públicas já existentes, em especial a Política Nacional de Saúde Integral para a População LBGT (PNSI-LGBT) (Ferreira & Nascimento, 2022; Prado et al, 2022). Considerando a relevância desta temática, o objetivo desse estudo foi analisar as barreiras para o acesso da população trans aos serviços de saúde presentes na literatura.

II. Método

Visando atender ao objetivo do estudo, realizou-se uma revisão integrativa de literatura. A revisão integrativa consiste em um método com abordagem ampla e de alta complexidade, que busca entender a literatura relacionada a determinado fenômeno (Mendes, Silveira & Galvão, 2008; Souza, Silva & Carvalho, 2010). Ela envolve as etapas de: elaboração da pergunta norteadora, busca ou amostragem na literatura, coleta de dados, análise crítica dos estudos, discussão dos resultados e apresentação da revisão.

A revisão integrativa foi realizada em julho de 2022, por meio da busca nas bases de dados SciELO (Scientific Electronic Library Online Citation Index), EMBASE (Excerpta Medica DataBASE) e MEDLINE/PubMed, as quais contemplam de forma abrangente e atualizada a literatura internacional da área da saúde, além de indexarem pesquisas da grande maioria dos países selecionados para o estudo. As buscas foram realizadas utilizando descritores (Mesh Terms) relacionados à transexualidade (Pessoas transgênero, Transexualidade e Disforia de gênero) e ao acesso à saúde (Serviços de Saúde, Barreiras ao Acesso aos Cuidados de Saúde e Acesso aos Serviços de Saúde). A estratégia de busca foi construída com os descritores e seus respectivos termos alternativos e as buscas foram realizadas em inglês. Essa estratégia foi adaptada para as demais bases de dados, utilizando os termos correspondentes aos seus vocabulários controlados, quando este existia.

Foram definidos como critérios de inclusão dos artigos: a) publicados nos idiomas inglês, espanhol e português; b) que atendessem à temática da pesquisa; c) com data de publicação entre os anos de 1998 e 2022 (marco temporal correspondente ao processo histórico de criação e de implementação de políticas públicas de cuidados em saúde para a população trans no Brasil); d) realizados no Brasil, Canadá, EUA, Portugal, Argentina, Uruguai, Espanha, África do Sul ou Holanda (países que possuem linhas de cuidados/protocolos em saúde transespecífica ou possuem leis que favorecem esse cuidado); e) cuja população estudada compreendesse adultos entre 18 e 65 anos de idade; e f) que tivessem sido realizados única e exclusivamente com a população trans ou com profissionais que atendessem a ela. Por fim, foram incluídos estudos encontrados na literatura cinzenta (ou seja, trabalhos encontrados na lista de referências dos artigos incluídos na revisão) que se encaixassem nos critérios de elegibilidade, abarcando publicações que não foram encontradas apenas pelas estratégias de busca utilizadas.

Quanto aos critérios de exclusão, foram excluídos da pesquisa trabalhos não publicados no formato de artigos científicos, trabalhos não disponíveis gratuitamente na internet, estudos teóricos e artigos de revisão. Em relação aos dois últimos critérios de exclusão, decidiu-se por incluir na pesquisa apenas estudos primários e empíricos, a fim de acessar diretamente as experiências de pacientes e profissionais da saúde acerca das barreiras enfrentadas no acesso aos serviços de saúde.

A partir das buscas realizadas nas bases de dados, foram encontrados 599 estudos e, a partir da busca manual por literatura cinzenta, outros 43 estudos foram identificados, somando um total de 642 estudos. Após a exclusão dos estudos duplicados, esse número reduziu para 638 estudos, os quais passaram pelo processo de triagem. Esse processo consistiu na leitura feita por uma dupla de revisores, de forma independente, do título e do resumo de todos os estudos, a fim de identificar se eles se enquadravam nos critérios de inclusão previamente estabelecidos. Diante de discordâncias sobre a inclusão de estudos, um terceiro revisor era convocado para a análise e deliberava sobre a decisão. Dessa análise, 542 artigos foram excluídos. Dessa forma, 95 artigos foram incluídos para a leitura na íntegra. Concluída essa etapa, e seguindo os critérios de exclusão previstos, 57 artigos foram efetivamente incluídos na revisão (Figura 01). Para a extração dos dados dos artigos incluídos, foi elaborada uma ficha padrão no programa Microsoft Excel 365. A ficha contava com 6 colunas: referência do artigo, país de publicação, objetivos, população, metodologia, e barreiras identificadas no acesso e acolhimento à saúde da população trans.

Na análise dos dados, foi utilizado o método de análise de conteúdo proposto por Bardin (2011). Tal metodologia compreende três etapas fundamentais: a pré-análise, fase de organização dos dados, em que se tem um primeiro contato com o material e se seleciona os documentos; na segunda etapa ocorre a exploração do material que é sistematizado e estabelecida a unidade de registro, demarcando núcleos de sentido e categorias; e a última que corresponde ao tratamento dos resultados, na qual os dados são analisados e agrupados, construindo interpretações significativas e articuladas ao escopo teórico do estudo (Bardin, 2011).

Através da análise de conteúdo, foram produzidas categorias e subcategorias acerca das barreiras identificadas. As categorias de codificação emergiram da própria análise de dados, sendo realizada por meio da aproximação daquelas barreiras que tratavam de temas similares. As subcategorias foram primeiramente construídas e, depois de agrupadas por similaridade, as categorias maiores emergiram. A categorização foi realizada por meio de uma dupla de revisores de forma independente, sendo que casos de dúvidas ou discordâncias foram resolvidas por um terceiro revisor, que deliberou sobre a decisão.

III. Resultados

Nesta seção serão apresentados os principais achados da revisão. Para isso, ela será dividida em duas partes: a primeira visando contextualizar as características amostrais e metodológicas dos estudos incluídos; e a segunda apresentando a classificação das barreiras identificadas na pesquisa.

1. Características amostrais e metodológicas dos estudos incluídos

Em relação à população estudada, um total de 38648 participantes trans compuseram as amostras dos estudos incluídos5. A grande diversidade de nomenclaturas utilizadas pelos autores para descrever identidades de gênero, raça e orientação sexual dificultou a comparação das características amostrais entre os estudos. Além disso, alguns artigos possibilitavam mais de uma resposta aos quesitos sobre identidades de gênero, orientações sexuais e identidades étnico-raciais ocasionando um número total contabilizado nas porcentagens diferente do número total geral de participantes (Tabela 1). A análise demonstra que houve a predominância de participantes brancos, identificados dentro do espectro da feminilidade, com expressões que desafiam o binarismo de gênero, e com um elevado grau de escolaridade.

Em relação aos profissionais que trabalhavam com esta população, foram incluídos 437 profissionais estudados. Alguns artigos apresentaram profissionais que exerciam mais de uma atuação profissional e apresentaram a eles a possibilidade de se identificar com mais de uma identidade de gênero e, por isso, as porcentagens podem não corresponder ao total de profissionais estudados (Tabela 02). A análise demonstra que mais da metade da amostra era composta por profissionais da saúde, com uma presença marcante de trabalhadores da área do serviço social. Além disso, a amostra era composta majoritariamente por pessoas não-brancas, heterossexuais e identificadas dentro do espectro da feminilidade. Nela, 14,87% (n = 65) da amostra se identificou dentro da comunidade LGBTQIA+, indicando que os serviços de saúde têm incorporado profissionais dessa comunidade, o que tem sido reivindicado na literatura como potencial para a aproximação entre profissionais e população trans (Costa-Val & Deslandes, 2022).

Em relação aos tipos de estudos incluídos, foi realizada uma análise acerca da abordagem, do método de coleta de dados e do método de análise de resultados. Em relação à abordagem, 27 estudos eram qualitativos, 26 eram quantitativos e 4 apresentavam uma abordagem mista (quantitativos e qualitativos). Quanto ao método de coleta de dados, observa-se que: 21 artigos realizaram entrevistas semiestruturadas (Maiorana et al., 2021; Melendez et al., 2009); 10 realizaram grupos focais (Rael et al., 2018; Wilson et al., 2019); 2 realizaram observação de campo/observação participante (Monteiro & Brigeiro., 2019; Tagliamento et al., 2016); 30 utilizaram questionários (Sevelius et al., 2020; Wilson et al., 2015); 4 utilizaram testes e escalas padronizadas (Jalil et al., 2018; Reisner et al., 2010); e 4 realizaram algum teste de HIV e/ou outras IST (Sevelius et al., 2021; Wilson et al., 2022).

Em relação à metodologia de análise de dados, observa-se que: 14 artigos realizaram análise de conteúdo/análise temática (Lacombe-Duncan et al., 2021; Nieto et al., 2021); 13 realizaram codificação temática de uma forma não sistematizada (Du Mont et al., 2020; Luvuno et al., 2019); 3 se utilizaram da teoria fundamentada emergente (Loo et al., 2021; Snelgrove, 2012); 1 utilizou o método “framework analysis” (Maiorana et al., 2021); 1 realizou uma análise etnográfica (Tagliamento et al., 2016); 25 realizaram análises estatísticas complexas (regressões logísticas, análises bivariadas, Testes Q², entre outros) (Kattari et al., 2021; Shires et al., 2018); e 13 realizaram análises estatísticas simples (média, moda, mediana e frequência)/análises descritivas (Lelutiu-Weinberger et al., 2016; Reback et al., 2021). Metodologicamente, há um certo equilíbrio entre perspectivas, instrumentos e métodos de análise quantitativos e qualitativos, revelando um campo de pesquisa rico e diversificado.

2. Classificação das barreiras identificadas

Os 57 artigos foram lidos na íntegra e, a partir do preenchimento da ficha para extração dos dados, os dados referentes às “barreiras identificadas” foram analisados. Dessa análise, resultaram 210 unidades de registros, as quais foram agrupadas em seis categorias e diversas subcategorias (Tabela 03).

A. Falta de informação e estigma no cuidado em saúde

Essa categoria se refere a uma série de perspectivas individuais (como informações, percepções, crenças e atitudes) que interferem na relação dos usuários com o serviço de saúde. Dessa forma, a categoria inclui: desconhecimentos, preocupações e estigmas relacionados ao HIV e à PrEP (18 estudos) (Bass et al., 2022; Rael et al., 2018); percepções de risco, cuidado e estigma relacionado ao HIV (16 estudos) (Nieto et al., 2021; Reisner et al., 2021); e ausência de informação e identificação sobre questões de saúde transespecífica (8 estudos) (Bockting et al., 2020; Snelgrove et al., 2012).

B. Transfobia nos serviços de saúde

Esta categoria trata de experiências negativas vivenciadas pela população trans em suas tentativas de acesso aos serviços de saúde, sendo que, de modo geral, essas experiências negativas ocorriam em razão da identidade de gênero ou por preconceitos/estereótipos relacionados aos cuidados ao HIV. Assim, a categoria engloba vivências de estigma e discriminação nos serviços de saúde e nos cuidados ao HIV (32 estudos) (Jaffee et al., 2016; Mendiola et al., 2020), desconfiança e medo de profissionais da saúde (14 estudos) (D’avanzo et al., 2019; Leite et al., 2021), não utilização do nome social (8 estudos) (Allison et al., 2021; Sevelius et al., 2019), cuidados inadequados e recusas de atendimentos (8 estudos) (Hines et al., 2019; Hoffkling et al., 2017) e desencorajamento e invalidação das identidades trans pelos profissionais da saúde (6 estudos) (Costa et al., 2018a; Lyons et al., 2016).

C. Falta de capacitação dos profissionais de saúde

Esta categoria trata de profissionais com capacitações deficitárias ou ausentes acerca de questões de saúde transespecífica, impactando na qualidade dos atendimentos recebidos pela população trans. Assim, a categoria inclui as insuficiências da formação profissional (23 estudos) (Cruz et al., 2014; Nemoto et al., 2015), as consequências negativas da falta de competência cultural, conceito que diz respeito à capacidade de os profissionais realizarem um cuidado efetivo e compreensivo por meio do respeito às percepções, crenças e costumes culturais dos usuários (5 estudos) (Hoffkling et al., 2017; Radix et al., 2014) e o desinteresse por parte dos profissionais em aprender sobre saúde transespecífica (3 estudos) (Bauer et al., 2009; Caravaca-Morera et al., 2017).

D. Ausência de políticas inclusivas

Esta categoria trata de políticas públicas que se mostram insuficientes para a inclusão e proteção efetiva da população trans, assim como de limites socioeconômicos que interferem no acesso aos cuidados em saúde. Dessa forma, a categoria abarca a ausência de políticas públicas inclusivas e eficazes (4 estudos) (Goldenberg et al., 2020; Scheim & Travers, 2017), o baixo acesso aos planos de saúde e os custos elevados dos tratamentos (12 estudos) (Costa et al., 2021; Rosen et al., 2019), a patologização de identidades trans (2 estudos) (Caravaca-Morera et al., 2017; Sousa & Iriart, 2018) e seu apagamento em campanhas de saúde (2 estudos) (Rael et al., 2018; Radix et al., 2014). Em relação às questões socioeconômicas, a categoria abarca também as vulnerabilidades econômicas e sociais que definem questões concorrentes ao cuidado em saúde para pessoas trans e travestis (7 estudos) (Reback et al., 2018; Jalil et al., 2017; Socías et al., 2014).

E. Inadequação das redes de serviços

Esta categoria diz respeito às barreiras macrossociais relacionadas à estruturação dos serviços de saúde de forma geral. Assim, dentre as barreiras encontram-se o baixo acesso/disponibilidade e a sobrecarga dos serviços de saúde (9 estudos) (Bradford et al., 2013; Johnson et al., 2020), a burocracia elevada e as longas filas de espera (5 estudos) (Bockting et al., 2020; Monteiro & Brigeiro, 2019), a falta de meio de transporte adequado e seguro para acessar aos serviços (4 estudos) (Van Gerwen et al., 2022; Wilson et al., 2013) e a localização inadequada/centralização de serviços transespecíficos (5 estudos) (Bauer et al., 2009; Munro et al., 2017).

F. Oferta dos serviços de saúde incompatível com as necessidades da população trans

Esta categoria diz respeito a operacionalização dos serviços de saúde, que impedem ou dificultam o acesso a cuidados integrais e especializados. Entre as dificuldades, incluem-se a inadequação do horário de funcionamento dos serviços de saúde (3 estudos) (Bockting et al., 2020; Ogunbajo et al., 2021), dos formulários de atendimentos (8 estudos) (Costa et al., 2018b; Loo et al., 2021), da estrutura física generificada dos serviços (5 estudos) (Van Gerwen et al., 2022; Monteiro & Brigeiro., 2019) e os desafios para a confidencialidade dos serviços relacionados ao HIV (3 estudos) (Costa et al., 2021; Hines et al., 2017).

Conforme demonstrado na tabela 03, analisando-se cada categoria isoladamente, percebe-se que a categoria “transfobia nos serviços de saúde” é citada com uma frequência total de 68 vezes e que a categoria “falta de informação e estigma no cuidado em saúde” foi identificada com uma frequência total de 42 vezes. Assim, são significativas as barreiras relacionadas aos preconceitos vivenciados cotidianamente por pessoas trans nos serviços de saúde, aos estigmas experimentados e à desinformação sobre os processos de cuidados em saúde. Essas barreiras sinalizam que, mesmo diante dos avanços em discussões e políticas públicas, as experiências de cuidado em saúde para a população trans ainda são marcadas por preconceitos, estereótipos e estigmas.

Analisando a tabela 03, percebe-se que o HIV e a PrEP são temas acionados em quase todas as categorias, seja em relação às dificuldades para acessar os cuidados e medidas de prevenção da doença ou relacionado aos estigmas e preconceitos que permeiam tal condição de saúde. Esse resultado sugere que as pesquisas estão centradas na temática ou o acesso a essas populações, para realização de pesquisas, permanece atrelado à prevenção e controle do HIV/Aids, convidando à reflexão sobre o pouco acesso/oferta de cuidado para a população trans em outros cenários dos sistemas de saúde (McCartney et al., 2024).

IV. Discussão

As barreiras identificadas nos estudos apontam o desafio do acesso e da qualidade da oferta de cuidado para a população trans nos sistemas de saúde, independente do modelo de financiamento, uma vez que as pesquisas foram realizadas em países com sistemas de saúde com modelo universal como Brasil, Espanha, Portugal e Canadá, sistema eminentemente privado como nos EUA, ou mistos como Holanda, Argentina, Uruguai e África do Sul, o que sugere que pessoas trans e travestis são posicionadas e permanecem ocupando um lugar de vulnerabilidade.

A vulnerabilidade diz respeito a um conjunto de aspectos individuais, sociais e coletivos que acarretam e estão relacionados a uma maior suscetibilidade de indivíduos ou grupos populacionais a uma doença ou agravo e a uma menor disponibilidade de recursos para que esses indivíduos e grupos consigam se proteger do adoecimento (Ayres, 2009; Ayres et al., 2012). A análise da vulnerabilidade integra três dimensões interdependentes e inseparáveis, sendo elas as dimensões individual, social e programática (Miranda et al., 2022).

A dimensão individual da vulnerabilidade engloba as possibilidades de que qualquer indivíduo possa experimentar um processo de adoecimento devido a características pessoais que podem contribuir para que ele se exponha a uma determinada doença ou se proteja dela (Ayres, 2009; Ayres et al., 2012). Considerando as barreiras identificadas, pode-se inferir que a categoria “falta de informação e estigma no cuidado em saúde” atuaria, especialmente, na dimensão individual da vulnerabilidade, uma vez que poderiam contribuir para que pessoas trans e travestis tenham menos práticas de cuidado e proteção e, portanto, maiores chances de se expor ao HIV ou de agravarem seus quadros de saúde (Bassichetto, et al., 2023). No entanto, a frequência elevada da categoria “falta de informação e estigma no cuidado em saúde” pode indicar o imbricamento da dimensão individual da vulnerabilidade com as dimensões social e programática. A dificuldade de acessar informações e a reiteração de conhecimentos e práticas associados ao estigma, tipicamente, estão associadas à fragilidade de ações de educação e informação em saúde, tanto quando pensada no espaço da educação formal (Machin et al., 2022) quanto da educação em saúde (Teixeira et al., 2020).

A dimensão social ou coletiva da vulnerabilidade compreende os fatores contextuais que definem e dão forma à vulnerabilidade individual. A dimensão social engloba aspectos como acesso à saúde integral, cultura, trabalho, meios de comunicação, educação, lazer, disponibilidade de recursos materiais, estigmas, discriminações, relações raciais, de gênero, entre outros (Ayres, 2009; Ayres et al., 2012). Barreiras como as identificadas na categoria “transfobia nos serviços de saúde” podem ser alocadas na dimensão social da vulnerabilidade. As experiências de discriminação e estigma vivenciadas por pessoas trans nos serviços de saúde devido à transfobia, afasta e exclui a população trans desses serviços (Duarte & Rocon, 2022; Eisenberg et al., 2020)

A recorrência da categoria “transfobia nos serviços de saúde” alerta para a necessidade de um alinhamento transnacional para garantir a proteção e o respeito às identidades trans, compreendendo que aspectos aparentemente burocráticos estão enraizados estruturalmente em modos de funcionamento institucional e operam para produzir os dispositivos de poder que modulam quais vidas merecem ser cuidadas (Bento, 2017; Caravaca-Morera & Padilha, 2018). Os serviços de saúde são engrenagens dessas maquinarias de poder e desempenham função de demarcar o lugar de abjeção da população trans potencializando a sua vulnerabilidade, conflitando com o reconhecimento de que a identidade de gênero compõe os Determinantes Sociais da Saúde e deve ser considerada na abordagem das vulnerabilidades (Galvão et al., 2021).

Por fim, a dimensão programática da vulnerabilidade diz respeito às formas que os governos protegem e promovem o direito à saúde, englobando a definição, o planejamento e a avaliação de políticas públicas, a organização do setor da saúde, a qualidade dos serviços, a preparação técnico-científica (qualificação) dos profissionais, entre outros aspectos (Ayres et al., 2012; Miranda et al., 2022; Santos, 2022). Nessa dimensão, podem ser incluídas quatro das seis categorias de barreiras identificadas: “falta de capacitação dos profissionais de saúde”, “ausência de políticas inclusivas”, “inadequação das redes de serviços” e “oferta dos serviços de saúde incompatível com as necessidades da população trans”. Perante a análise realizada, observa-se uma predominância de barreiras que se enquadram na dimensão programática da vulnerabilidade, com quase metade do total de barreiras identificadas (100). Essas categorias sugerem a necessidade de adoção e implementação de políticas públicas para a população trans de forma ampla e abrangente. Países com políticas mais protetoras têm melhor resultado e possibilitam que pessoas trans e travestis se sintam seguras ao acessar cuidados em saúde (Goldenberg et al., 2020; Vieira et al., 2019).

V. Considerações finais

O presente estudo analisou as barreiras identificadas, na literatura brasileira e internacional, para o acesso e o acolhimento em saúde para a população trans nos serviços de saúde. Foi observado que a maior parte dos estudos apontam barreiras estruturais, trazendo a relevância dos aspectos relacionados à dimensão programática da vulnerabilidade. A predominância desse tipo de vulnerabilidade sugere a necessidade de ações de governo que instituam, ampliem e fortaleçam as políticas públicas de saúde orientadas pelas diretrizes da Organização Mundial da Saúde que definem a identidade de gênero como marcador estruturante e reconhecem seu efeito no posicionamento desigual das pessoas trans em seu processo de saúde-adoecimento e cuidado.

Em relação aos limites da pesquisa, nesta revisão foram incluídos apenas artigos empíricos indexados nas bases de dados pesquisadas, deixando de incorporar material potencialmente útil disponível em outros formatos e bases. Alguns artigos analisados resultaram de pesquisas primárias maiores com sobreposição de estudos secundários, demandando esforço na caracterização dos participantes para evitar repetições. Em vários estudos, a faixa etária de sua população não estava delimitada por ciclos de vida ou estágios (por exemplo, estudos que informavam a população como maiores de 18 anos) e dado o grande contingente de estudos sem essa especificação, optou-se por incluí-los na pesquisa a fim de evitar a perda de dados importantes.

Apesar das limitações apontadas, a revisão, ao sistematizar as principais barreiras, posicionando-as na esfera da vulnerabilidade programática, a qual é cotidianamente materializada na transfobia institucional, alerta os países para a necessidade de estruturação de políticas públicas eficazes, pois é o Estado que deve atuar como autoridade sanitária, inclusive para formulação de políticas de educação continuada dos trabalhadores.

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  1. 1 Residente no Programa de Atenção em Oncologia pelo Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia; graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia; debora.barbosa@ufu.br; ORCID: 0009-0008-9818-8772. Projeto de pesquisa financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), processo n° 06/2022.

  2. 2 Professor Titular da Universidade Federal de Uberlândia e Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia; emersonrasera@ufu.br; ORCID: 0000-0001-6289-2313.

  3. 3 Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia; noelle.ferreira@ufu.br, ORCID: 0009-0004-0203-4842.

  4. 4 Professora Associada da Universidade Federal de Uberlândia (Faculdade de Medicina, Departamento de Saúde Coletiva) e docente do Programa de Pós-graduação em Saúde da Família; flavia.teixeira@ufu.br, ORCID: 0000-0001-5605-636X.

  5. 5 Este número corresponde ao total de participantes de 53 artigos, uma vez que 4 artigos tiveram suas amostras não contabilizadas. Isso ocorreu porque tais artigos se caracterizavam como estudos secundários de pesquisas maiores e suas amostras apresentavam uma grande sobreposição com outros artigos advindos dos mesmos estudos. Devido a isso, optou-se por considerar os estudos com recortes de amostras maiores a fim de não contabilizar mais de uma vez um mesmo grupo.