Justiça sexual: percepções jurídicas sobre saúde e sexualidade a partir do caso Carvalho Pinto de Sousa Morais vs Portugal
Sexual justice: legal perceptions about health and sexuality based on the case of Carvalho Pinto de Sousa Morais vs Portugal
Sheila Cibele Kruger Carvalho1; Victoria Pedrazzi2
Joice Graciele Nielsson3
DOI: https://doi.org/10.37767/2591-3476(2024)09
Fecha de envío: 26.06.2024
Fecha de aceptación: 19.08.2024
RESUMO:
O presente artigo visa refletir acerca da justiça sexual a partir do caso Carvalho Pinto de Souza Morais vs. Portugal, julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, questionando o exercício da tutela do Estado sobre os corpos femininos e a inobservância dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Busca abordar sobre a incorporação de valores negativos em relação ao exercício da sexualidade das mulheres, tendo como fundamento primordial o exercício da sexualidade masculina como padrão, não contemplando o direito ao prazer feminino como absoluto. Com isso, o padrão patriarcal determina previamente qual a necessidade sexual das mulheres, mantendo seus corpos, seus desejos e sua liberdade sob controle.
RESUMEN:
Este artículo tiene como objetivo reflexionar sobre la justicia sexual a partir del caso Carvalho Pinto de Souza Morais vs. Portugal, juzgado por el Tribunal Europeo de Derechos Humanos, cuestiona el ejercicio de la tutela del Estado sobre los cuerpos femeninos y el incumplimiento de los derechos sexuales y reproductivos de las mujeres. Se busca abordar la incorporación de valores negativos en relación al ejercicio de la sexualidad femenina, teniendo como fundamento primordial el ejercicio de la sexualidad masculina como norma, no considerando como absoluto el derecho al placer femenino. Como resultado, el estándar patriarcal determina previamente las necesidades sexuales de las mujeres, manteniendo bajo control sus cuerpos, sus deseos y su libertad.
ABSTRACT
This article aims to reflect on sexual justice based on the case of Carvalho Pinto de Souza Morais vs. Portugal, judged by the European Court of Human Rights, questioning the State's exercise of guardianship over female bodies and the failure to observe women's sexual and reproductive rights. It seeks to address the incorporation of negative values in relation to the exercise of women's sexuality, having as its primary foundation the exercise of male sexuality as a standard, not considering the right to female pleasure as absolute. As a result, the patriarchal standard previously determines women's sexual needs, keeping their bodies, their desires and their freedom under control.
PALAVRAS-CHAVE: E Direito ao prazer; Direitos reprodutivos; Direitos Sexuais; Justiça sexual; Sexualidade.
PALABRAS CLAVE: Derecho al placer; Derechos reproductivos; Derechos Sexuales; Justicia sexual; Sexualidad.
KEY WORDS: Right to pleasure; reproductive rights; Sexual Rights; sexual justice; Sexuality.
I. Introdução
O artigo busca discutir a questão do acesso ao prazer feminino, a partir do caso Carvalho Pinto de Souza Morais vs. Portugal, julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos em 25 de julho de 2017. Questiona as formas pelas quais o Estado exerce sua tutela sobre o acesso ao prazer, especificamente sob viés de gênero, analisando, a partir de um caso julgado pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos, o reconhecimento do prazer sexual como um bem implícito ao direito humano a uma vida sexual ativa. Apresenta, como hipótese, a consideração de que, na vinculação entre prazer e autonomia da sexualidade, estão imbricados inúmeros estereótipos de gênero e padrões sociais, culturais e interseccionais (como sexualidade, classe, raça e etarismo) desiguais, que tornam possível interpretar o acesso ao prazer sexual como bem jurídico a ser protegido, fundamental à vivência de uma vida plena de direitos e dignidade.
A respeito da sexualidade, o presente trabalho versa sobre a questão do prazer feminino em uma perspectiva transdisciplinar, e não apenas jurídica. Analisar-se-á a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Carvalho Pinto de Sousa Morais V. Portugal que, por um lado perspectiva o prazer como um bem jurídico dentro dos direitos sexuais, e, em contrapartida, desvela estereótipos de gênero envolvidos na sua consideração como “direito fundamental”. Neste movimento, outras áreas para além do direito devem ser mobilizadas para compreender o prazer enquanto uma necessidade humana complexa, cujo entendimento, especialmente sob a perspectiva de gênero, clama pela ótica da filosofia, da sociologia, e da antropologia e de outras ciências humanas. E são essas reflexões além do direito que permitirão a compreensão das inúmeras camadas de estereótipos, preconceitos e necessidades que precisam ser desveladas para que possamos falar de um direito ao exercício da sexualidade através da busca do prazer; direito esse que existe, “no papel”, para todos, mas cuja concretização está longe de ser uma realidade para as mulheres.
A metodologia utilizada no presente projeto consiste em pesquisas documentais e bibliográficas, escrutinando a bibliografia acerca do tema, além, é claro, da análise de caso que será empregada. A pesquisa será exploratória, utilizando-se de fontes bibliográficas, realizadas através de abordagens hipotético-dedutivas. Será observada a seleção de bibliografia em relação à temática que se pretende estudar, cuja função é a elaboração de um referencial teórico sobre o tema, respondendo ao problema que o trabalho propõe, colaborando com a hipótese e atingindo o objetivo da pesquisa. Ademais, a presente pesquisa foi determinada com base na metodologia hipotético-dedutiva, em seus aspectos qualiquantitativos, bibliográficos, documentais e exploratórios. Verificando-se, principalmente, informações sobre o caso concreto discutido, bibliografias relacionadas a autores que estudam temáticas afins e documentos que remetem relevância sobre o tema abordado.
O estudo encontra-se dividido em duas seções que correspondem aos seus objetivos específicos. A primeira parte versa sobre o relato do caso Carvalho Pinto e Sousa versus Portugal no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, com um olhar voltado aos estereótipos e violências de gênero. Já no segundo tópico, busca elucidar sobre o direito ao prazer e como as mulheres são atravessadas por decisões alheias sobre seus corpos, tendo seus direitos sexuais desvalorizados em relação aos dos homens, levantando questionamentos acerca da efetiva igualdade do direito à vida sexual plena para homens e mulheres.
II. O caso Carvalho Pinto e o viés de gênero na análise jurídica sobre a justiça sexual
O caso Carvalho Pinto remete a um fato ocorrido em dezembro de 1993, momento no qual a autora do processo, senhora Carvalho Pinto de Sousa Morais foi diagnosticada com bartolinite, uma doença ginecológica que afeta a glândula de Bartholin ao lado esquerdo de sua vagina. Foi sucessivamente submetida a drenagens, após as quais a glândula voltava a inchar, causando considerável dor. Em maio de 1995, a autora teve as duas glândulas de Bartholin removidas cirurgicamente no Centro Hospitalar de Lisboa Central (CHLC), onde realizava os acompanhamentos. Em uma data desconhecida após a alta hospitalar, ela começou a experienciar dor intensa e perda de sensação na vagina, além de incontinência urinária, dificuldades para sentar e caminhar e não pôde manter relações sexuais. Mais tarde, em uma clínica privada, teve o diagnóstico de lesão do nervo pudendo interno à esquerda e entrou com uma ação civil contra o CHLC, perante o Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, em abril de 2000.
Em outubro de 2013, a Corte Administrativa de Lisboa decidiu parcialmente em favor da vítima, estabelecendo que ela:
Desde 1995 sofria de uma deficiência física que resultou numa incapacidade global permanente de 73% resultante da lesão do nervo pudendo. Após a alta do hospital, queixou-se de dor e insensibilidade na parte do corpo que havia sido submetida à operação, e ainda se encontrava edemaciada. O nervo pudendo esquerdo havia sido lesado durante a cirurgia, sendo causa da dor que a autora vinha sofrendo, da perda de sensibilidade e do edema na área vaginal. A autora sofreu diminuição da sensibilidade vaginal devido à lesão parcial do nervo pudendo esquerdo (Case Of Carvalho Pinto De Sousa Morais V. Portugal - Application No. 17484/15).
A Corte considerou que foi a injúria que causou, entre outros problemas, a perda de sensibilidade na vagina e incontinência urinária. Como consequência, ela tinha dificuldades para caminhar, sentar e ter relações sexuais, o que a fez sentir-se diminuída como mulher. Consequentemente, sofreu depressão, pensamentos suicidas e evitava contato com seus familiares e amigos. Em primeira instância, o lesante foi condenado ao pagamento de uma indenização de 172.000 euros. Ele apresentou recurso, o qual teve provimento. A decisão do Tribunal de recurso concluiu pela diminuição do valor indenizatório alegando que a mulher já tinha 50 anos na época da cirurgia e dois filhos, “isto é, uma idade em que a sexualidade não tem a importância que assume em idades mais jovens, importância essa que vai diminuindo à medida que a idade avança” (Case Of Carvalho Pinto De Sousa Morais V. Portugal Application No. 17484/15).
Um dos valores diminuídos dizia respeito ao pleito do pagamento de uma empregada doméstica para auxiliar no cotidiano, frente ao qual o tribunal de recurso argumentou que o valor seria excessivo, “atenta às idades dos seus filhos, a mesma apenas teria de cuidar do seu marido.” Duarte (2021) dispõe que o caso suscitou indignação junto à opinião pública, inclusive suscitando manifestação da Associação Sindical de Mulheres Juristas, demonstrando sua perplexidade quanto à aplicação da idade e da condição da maternidade para dirimir o direito ao gozo de uma vida sexual ativa.
Esgotadas as instâncias recursais, a autora recorreu ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que, em 2017, condenou o Estado Português por violar os artigos 8° e 14° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, referentes, respectivamente, ao direito ao respeito pela vida privada e familiar e à proibição da discriminação. Segundo Duarte (2021: 560), o Tribunal Europeu de Direitos Humanos considerou, assim, que a decisão do Supremo Tribunal Português “estava informada por preconceitos de gênero e de idade”.
Sob a ótica dos estudos sobre gênero, já antes de Foucault (2022) escrever, na História da Sexualidade 1, sobre o encontro dos discursos médico, político e jurídico sobre o corpo, ele falava no Collège de France sobre as relações de dominação exercidas pelo direito e pelo sistema judiciário:
O sistema do direito e o campo judiciário são o veículo permanente de relações de dominação, de técnicas de sujeição polimorfas. O direito, é preciso examiná-lo, creio eu, não sob o aspecto de uma legitimidade a ser fixada, mas sob o aspecto dos procedimentos de sujeição que ele põe em prática. (Foucault, 2010: 24)
Embora se referisse ao sistema penal, as técnicas de sujeição polimorfas não englobam apenas o que está escrito no ordenamento jurídico. Ao legislar através de lentes humanas, patriarcais em sua maioria, o direito pode aplicar mecanismos de sujeição que têm raízes nos mais antigos preconceitos da sociedade. E neste momento, o princípio da igualdade entre todos os seres humanos escapa por entre os dedos de um direito incapaz de despir-se de estereótipos de gênero (e de raça, cor, procedência, classe social, orientação sexual, entre outros).
O desvelamento da estrutura patriarcal e machista do direito já vem sendo feito pelo desenvolvimento da teoria feminista do direito, que, de acordo com Burckhardt (2017), se refere a um conjunto de estudos sobre a construção e do funcionamento do direito a partir de perspectivas que enfatizam suas implicações para as mulheres e para suas vidas. Seja compreendendo o direito como um projeto teórico com efeitos concretos, seja como uma disciplina acadêmica, tais projetos incorporam questionamentos sobre o significado e o impacto do direito na vida das mulheres, reconhecendo que o direito nega experiências e necessidades das mulheres, e que o patriarcado permeia o sistema jurídico e todo o seu funcionamento de tal modo que todo o exercício do direito torna-se perpassado por julgamentos morais e políticos sobre o valor das mulheres e sobre como elas devem ser tratadas (Burckhardt, 2022).
Este conjunto teórico permite, por exemplo, analisar o caso concreto da Senhora Carvalho Pinto a partir da comparação de jurisprudência com casos semelhantes. A título de comparação, o acórdão do TEDH cita dois julgamentos. Um deles, realizado em março de 2008, quando a Suprema Corte de Justiça portuguesa concedeu uma indenização de €224.459,05 (superior à primeira instância do caso em questão) a um homem de quase 59 anos, pelo dano de ficar impotente e com incontinência urinária após uma prostatectomia radical. No outro caso, em junho de 2014, a Suprema Corte concedeu indenização de €100.000 a outro homem, este com 55 anos, que devido a um diagnóstico errôneo de câncer, foi submetido a uma prostatectomia radical que “teve efeitos permanentes em sua vida sexual”. A estes dois homens, não foi considerado o fato de ter ou não ter tido filhos na avaliação de seus danos. Também a idade de ambos, inclusive mais avançada do que a idade da senhora Carvalho Pinto de Sousa Morais, não foi motivo para reduzir o valor da indenização, devido à menor importância da atividade sexual em suas vidas.
Neste sentido, observa-se a diferença do valor concedido pelo Tribunal Português à vida sexual dos homens, comparado à da senhora Carvalho Pinto de Sousa Morais. No momento em que as leis são analisadas sob a ótica patriarcal, critérios baseados em estereótipos sexistas e etaristas determinam que a mulher é menos digna de ter uma vida sexual ativa porque já não é jovem e porque já teve filhos.
A redução da sexualidade feminina ao seu valor reprodutivo é uma forma de inserção das mulheres em dispositivos biopolíticos de poder. Foucault (2010) chama de biopolítica a tecnologia de poder, isto é, de exercer poder sobre determinada população. Embora lhe escape a especificidade da biopolítica sobre os corpos femininos, outras autoras têm buscado inserir a perspectiva de gênero no discurso foucaultiano. A pesquisadora Joice Graciele Nielsson (2022) discutiu o tema na descrição do dispositivo da reprodutividade, o controle de corpos femininos através da reivindicação da centralidade dos mesmos ao órgão reprodutivo, o útero.
Ao reivindicar a centralidade do corpo reprodutivo feminino e do útero, seu elemento biológico fundamental, à manutenção do poder, tanto disciplinar quanto biopolítico, pretende-se auxiliar na compreensão das razões pelas quais o controle do corpo feminino e a gestão da reprodução têm se tornado espaço privilegiado de atuação do patriarcalismo conservador (Sturza, Nielsson e Wermuth, 2020: 16).
Através da análise da história da laqueadura tubária na América Latina, Nielsson (2022: 81) apresenta a variação de critérios judiciais na gestão dos corpos femininos, nas decisões judiciais acerca de quais corpos estão aptos a reproduzir e quais não:
Essa variação de critérios a partir do perfil da paciente nada mais é do que a exceptio biopolítica. Em muitos casos, os critérios são instrumentalizados para dificultar ou impedir a laqueadura para mulheres com certas características ou em determinadas situações, tornando o procedimento inalcançável. Por outro lado, para outras mulheres, os critérios são instrumentalizados para permitir a esterilização, à revelia da vontade (...).
Os estudos de Nielsson (2022) acerca da Lei do Planejamento Familiar no Brasil e América Latina são uma demonstração de como a proteção aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres escapa ao direito. Através das lentes patriarcais do Estado, misturam-se direto, opiniões pessoais, julgamentos morais e de cunho religioso, reforçando os mais variados estereótipos de gênero.
Na consideração do direito acerca do sexo, esses estereótipos são atravessados também pelo etarismo genderizado, através do qual a Suprema Corte portuguesa considerou que, aos 50 anos, a sexualidade de uma mulher já não tem mais a mesma importância do que em idades mais jovens, fato que não se reproduziu para os homens de 55 e 59 anos, conforme o acórdão. Naomi Wolf (2019) discorre sobre como a sexualidade feminina é submetida à “pornografia da beleza”, que vincula sexualidade à beleza, e beleza, à juventude. A beleza está na juventude e é esta mulher que é digna de gozar uma vida sexual. Também, porque esta é a mulher que pode reproduzir-se, fornecendo força de trabalho para girar a roda do capitalismo. É desta época, da racionalização capitalista da sexualidade, que remonta o desprezo pela sexualidade da mulher madura. Nesse sentido,
A repulsa que a sexualidade não procriativa estava começando a inspirar é bem evidente pelo mito da velha bruxa voando na sua vassoura (...). Este imaginário retrata uma nova disciplina sexual que negava à “velha feia”, que já não era fértil, o direito a uma vida sexual. (Federici, 2017: 346).
A sexualidade que não visa a procriação, não é legítima para a mulher, porque o lugar que lhe foi destinado na arena capitalista da modernidade foi o espaço privado do lar. Este é o estereótipo de gênero que ascendeu no século XVIII, com o enrijecimento da divisão entre os espaços público e privado, e que permanece no cerne moral da sociedade até hoje (Zanello, 2018). Através desta lente, a decisão da Suprema Corte diminuiu a indenização pleiteada pela mulher para ajuda doméstica, já que “atenta às idades dos seus filhos, a mesma apenas teria de cuidar do seu marido”. (Case Of Carvalho Pinto De Sousa Morais V. Portugal (Application No. 17484/15).
Por meio da atribuição social do espaço privado à mulher, e da construção social da maternidade (amorosa), também lhe couberam as tarefas de cuidado. Estava no novo contrato, na divisão do trabalho firmada pelo pacto do casamento (Zanello, 2018). A mulher cuida da casa, dos filhos e, de acordo com a sentença do Supremo Tribunal português, do marido. A função social do cuidado dentro do espaço privado do lar é o estereótipo de gênero que exclui a mulher dos espaços públicos até os dias atuais. É entre e através desses diversos estereótipos de gênero da sociedade patriarcal que paira um suposto direito moderno liberal, visando a igualdade entre todos os indivíduos, e, portanto, entre homens e mulheres.
No entanto, apesar desta suposta igualdade, na prática o que se percebe é um direito ainda acorrentado aos princípios patriarcais, que por sua vez, são também vinculados à própria construção cultural diferenciada do comportamento sexual, algo aprendido, de acordo com Gagnon (2006), e não meramente determinado por impulsos e instintos. Sob esta ótica, comportamentos sexuais seriam espécies de roteiros performados pelos atores sociais que interpretam as normas e mitos socioculturais, e que, segundo Araújo e Zanello (2024), levaria a um vínculo entre desigualdade de gênero e a aprendizagem e consideração social do que seja uma conduta sexual apropriada, dos modos ‘adequados’ de se lidar com o prazer, dentre outros, que determinarão uma espécie de “script sexual a ser seguido diferenciadamente de acordo com o gênero” (Araújo; Zanello, 2024: 03).
Tais imaginários sociais e scripts culturais também são reproduzidos através do discurso jurídico. Nas palavras de Lucas e Ghisleni (2016: 517), no que toca especificamente o corpo feminino, verifica-se que “o direito se apropria dele de forma bem específica, regulando condutas relativas à reprodução, contracepção, aborto, prostituição e esterilização (sobretudo em mulheres jovens), ou seja, à sexualidade de um modo geral”.
Como observado no caso Carvalho Pinto de Sousa Morais v. Portugal, no direito também existem maneiras inespecíficas de se apropriar da sexualidade feminina, manipulá-la, fazê-la quase não existir. Essas maneiras estão no exercício diário do legislar “para todos”, de garantir os direitos fundamentais do homem (do sexo masculino).
III. O direito a uma vida sexual: é possível falar em justiça sexual?
Embora o direito ao exercício da sexualidade através da busca pelo prazer sexual não seja um bem positivado explicitamente em ordenamento jurídico, sua tutela pelo Estado está implícita, como no caso do Tribunal Europeu de Direitos Humanos. Para Lopes (2022), o completo desenvolvimento da sexualidade, como direito humano, depende também da satisfação das necessidades humanas de desejo de contato, intimidade, expressão emocional, carinho, amor e prazer. No caso citado no acórdão, a tutela do direito ao prazer está implícita na defesa do prejuízo da vida sexual e da impotência sexual queixadas pelos dois homens. Está implícita, nos estereótipos de gênero aplicados ao julgamento do caso da Senhora Carvalho Pinto de Sousa Morais. Segundo manifestação da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, por ocasião do caso relatado:
o direito a uma vida sexual ativa se insere na esfera dos direitos sexuais e reprodutivos, que são direitos fundamentais pessoais, protegidos e tutelados pela Constituição da República, nomeadamente no seu artigo 26° n°1, e pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. (Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, 1988).
Neste sentido, é necessária uma compreensão ampla do que seria sexualidade, e, por sua vez, do próprio direito à saúde sexual. Tal compreensão, conforme explicitam Araújo e Zanello (2022), já vem ocorrendo, na medida em que o próprio DSM - V4 considera que a função sexual envolve uma interação complexa entre fatores biológicos, socioculturais e psicológicos. Este conceito mais amplo é reforçado pela Organização Mundial de Saúde, “para quem o foco da saúde sexual não está na “função” sexual, termo que pode inferir o sexo como um “trabalho” que os órgãos desempenham, mas se os indivíduos se sentem satisfeitos com o seu desempenho, experiências físicas, emocionais e sociais relacionadas ao sexo”5 (Araújo e Zanello, 2022: 03, tradução nossa).
Anna Srinivasan (2021: 12) chega a falar em um Direito ao Sexo, em seu livro homônimo. Para a autora, o sexo “que supomos ser o mais privado dos atos, é na verdade, algo público”. Isto implica considerar que, “os papéis que desempenhamos, as emoções que sentimos, quem dá, quem tira, quem exige, quem serve, quem deseja, quem é desejado, quem se beneficia, quem sofre: todas essas regras foram estabelecidas muito antes de entrarmos no mundo” (2021: 12). E tais formas de determinação são entrelaçadas com formas histórias de opressão e hierarquização de seres humanos: patriarcado, racismo, classismo, capacitismo, etarismo, dentre outros, são conjuntos de opressão estruturais que colonizam tanto o sexo quanto a própria constituição do desejo e da satisfação sexual (Zanello, 2018).
Nestes termos, cabe questionar, o direito a uma vida sexual ativa contempla igualmente homens e mulheres? Carmita Abdo (2019), psiquiatra, pesquisadora da área médica, evidencia em seus estudos empíricos que, no Brasil, 8,2% das mulheres se queixam de absoluta falta de desejo sexual; 26,2% não atingem o orgasmo; 26,6% têm dificuldade de excitação e 17,8%, dispareunia (dor na relação sexual).
Além disso, na mesma senda sobre o controle da sexualidade e liberdade sexual das mulheres, Nielsson (2022) discute que esterilização voluntária foi proibida em 1984 pela Resolução nº 1.154 do Conselho Federal de Medicina, salvo em casos específicos, mediante indicação médica e atestado assinado por dois médicos. Já em 1988, o Código de Ética Médica proibiu a realização da cirurgia em todas as hipóteses, mas essa proibição não inibiu a prática do procedimento, principalmente no setor privado (apud Berquó; Cavenaghi, 2003). Nessa época, “mais de 44% das mulheres brasileiras em idade reprodutiva estavam esterilizadas, ou seja, 7,5 milhões de mulheres brasileiras em idade reprodutiva estavam incapacitadas para ter filhos.” (Nielsson, 2022). Isso reflete diretamente na qualidade de vida sexual dessas mulheres, que assim como a senhora Carvalho Pinto de Sousa Morais, milhares de brasileiras tiveram e tem seus corpos violados e desrespeitados, muito mais do que em relação aos homens. Nesse sentido,
De acordo com os dados fornecidos pelo Ministério da Saúde do Peru, os procedimentos de esterilização forçada foram mais intensamente utilizados contra as mulheres do que contra os homens. O fato de pertencer a uma classe social desfavorecida, sendo uma trabalhadora do campo, pobre e sem instrução, também a colocou em situação de vulnerabilidade frente às ameaças deferidas pelos profissionais da saúde pública (Nielsson, 2022: 70, apud Lima, 2014: 343).
Em contraponto com os dados da esterilização feminina coercitiva, pode-se observar dados que não respeitam também a liberdade daquelas mulheres que desejam de fato o acesso a contracepção. Em 2024 o Comitê para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Cedaw) da Organização das Nações Unidas (ONU) cobrou o país por falhas no acesso ao aborto previsto em lei6. No ano de 2023, mais de 12.000 meninas entre 8 e 14 anos foram mães no Brasil7, evidenciando uma verdadeira epidemia de gravidez na adolescência, potencializada pelo acesso inadequado aos métodos contraceptivos e ao aborto legal. Embora a legislação garanta direito ao aborto legal para essas meninas, elas não têm acesso ao direito, e terminam, por fim, no exercício de uma maternidade obrigatória e imposta por terceiros.
Ademais, no caso em discussão, a senhora Carvalho Pinto de Sousa Morais apresentou ao Tribunal Superior de Portugal a queixa de “dificuldade para manter relações sexuais”, relacionada com o edema local e com a diminuição da sensibilidade na região da vagina. Relacionou também essas queixas à diminuição do seu sentimento de “ser mulher”, sintomas depressivos, afastamento do convívio de amigos e familiares e pensamentos suicidas, demonstrando que a dimensão sexual feminina envolve camadas que escapam à razoabilidade prática do ordenamento jurídico.
Isso porque as discussões que positivam ordenamentos jurídicos podem não começar na razão prática. A complexidade das necessidades humanas requer a elaboração dos discursos, de forma que os direitos humanos passem à luz das ciências sociais. A própria relação entre filosofia e direito é umbilical e originária. A discussão acerca do direito ao prazer clama por estas intersecções.
O direito à vida sexual é um bem fundamental. Tão fundamental que a ausência de sua possibilidade causou ideações suicidas à senhora Carvalho, Pinto de Sousa Morais. Entretanto, é impossível falar sobre vida sexual sem considerar a perspectiva de gênero. Quando o bem “prazer sexual” é relativo ao ser humano do gênero masculino, ele, geralmente, está implícito no ato sexual. Para a mulher, existem diversas camadas implicadas no direito ao prazer sexual, sejam elas cada um dos estereótipos discutidos anteriormente, que tornam a relação entre prazer e ato sexual um tanto nebulosa. O ato sexual pode não significar prazer, ou mesmo pode, com expressiva maior frequência do que para o homem, significar uma violência.
Nas palavras de Araújo e Zanello (2024), o desejo sexual das mulheres pode ser analisado pela interação de vários fatores, tais como fatores: biológicos, consequência de mecanismos neuroendócrinos que estimulam interesse sexual; psicológicos, como alterações do humor e automonitoramento crítico durante o ato sexual; socioculturais, as crenças e valores que são o resultado do componente social que promove expectativas e idealizações sobre a atividade sexual e, os fatores interpessoais, a satisfação da mulher com o seu relacionamento, a qualidade da comunicação entre ela e o parceiro, resultando na sua motivação para o sexo. Para as autoras, todas essas condições podem afetar o desejo feminino e interagem entre si o tempo todo, de forma dinâmica” (2024: 03).
Para as autoras (Araújo e Zanello, 2022: 02, tradução nossa),
O desejo sexual é um fenômeno complexo que compreende diferentes dimensões, como o corpo biológico, o corpo de experiência, as emoções, o enquadramento cultural específico (incluindo gênero, raça, classe social, educação, crenças, moralidade etc.), configurações biográficas idiossincráticas, o imaginário e comportamentos, entre outros. Dentre diversas definições de desejo sexual, podemos entendê-lo como uma experiência cognitiva, caracterizada por pensamentos, fantasias, motivações; uma entidade emocional como interesse sexual e desejo de fazer sexo; ou um evento comportamental, como receptividade ou início de atividade sexual8.
Christa Wichterich (2015), descreve que o “desenvolvimento do desejo e da escolha individual é moldado, em qualquer época, por contextos particulares, relações sociais e pela interação das estruturas econômicas e políticas de poder.” Dessa forma, os desejos sexuais e reprodutivos são atravessados por decisões externas, normalmente feitas por todos que não são (ou pelo menos não deveriam ser) de fato, detentores do poder da tomada dessas decisões. A autora ainda traz questionamentos sobre a temática:
Até que ponto as mulheres são vítimas do controle masculino e subordinação patriarcal, e ao mesmo tempo são agentes que escolhem e decidem por si mesmas? Como cada ser humano existe em um nexo de relações sociais e se enreda nas estruturas e sentimentos de pertencimento, dependências, ordens simbólicas e regimes normativos relevantes, até que ponto é possível falar de livre escolha, autonomia e autodeterminação? Qual é a relação com o próprio corpo? Será que uma mulher possui o próprio corpo? Ou ela é seu corpo? (Wichterich, 2015: 21).
Nas relações heterossexuais, o prazer sexual feminino passa por uma construção social de gênero que determina a sujeição da mulher em relação ao homem (Butler, 2020). Essa é a forma como a mulher se constituiu como sujeito ao longo da história. Na submissão ao homem, na construção social da maternidade e da mulher cuidadora do lar, está subjetivado também o ato sexual com finalidade reprodutiva, e, portanto, falocêntrico, que tem como objetivo final a ejaculação (orgasmo) masculino. O prazer feminino não é priorizado, quiçá representado.
É o que identificaram Araújo e Zanello (2024) em pesquisa recente, segundo a qual, a diminuição do desejo é uma queixa frequente entre mulheres brasileiras em relacionamentos heterossexuais prolongados, sendo quatro vezes mais frequente entre as mulheres que nos homens. Ao pesquisar o tema, as autoras propugnavam a necessidade de avaliar outros aspectos que influenciam a libido feminina, para além dos aspectos biológicos, especialmente vinculados à desigualdade de gênero como centrais ao fenômeno: 1) criação/educação sexista; 2) relacionamentos amorosos marcados por assimetrias; 3) questões relativas aos dilemas da maternidade.
Quanto à educação sexista (Araújo e Zanello, 2024) apontam o papel da família, da religião e do entorno cultural para que o sexo seja visto pelas mulheres como um tabu, com a valorização da renúncia e do recato sexual, e a desvalorização da mulher ‘desejante’, ou seja, evidenciou-se a incorporação de valores negativos em relação ao exercício da sexualidade pelas mulheres. O segundo eixo enfatiza a assimetria de gênero nos relacionamentos amorosos, tendo homens e mulheres expectativas discrepantes em relação ao sexo e ao afeto, promovendo assim um desigual investimento e compromisso de lealdade, de acordo com os processos de subjetivação gendrados. O terceiro eixo, por sua vez, destaca o forte impacto negativo da maternidade sobre a libido feminina, seja pela sobrecarga advinda do cuidado com os filhos, seja pela falta de parceria e consequente decepção em relação ao marido na função de pai, seja pela dificuldade de se ver como mulher sexual, após se ver como mãe.
Há constantes lutas para os avanços para autonomia da mulher quanto ao seu corpo e sua sexualidade na sociedade, como por exemplo o uso ou não de tecnologias reprodutivas, barrigas de aluguel, congelamento de óvulos, dentre outros mecanismos (Wichterich, 2015). No entanto, ocorrem casos como o de Carvalho Pinto de Sousa Morais para confirmar que “o conceito de escolha individual e autonomia mascara as relações de desigualdade social nas quais essas decisões são tomadas” (Wichterich, 2015: 22). O prazer feminino é relativizado tão facilmente quanto os arrazoamentos apresentados pela Suprema Corte Portuguesa para diminuir a indenização da autora do processo, ou anulado e desautorizado como o “hábito cultural” da mutilação genital feminina (Ghisleni, 2023).
Na busca pela igualdade de direitos fundamentais, no caso do prazer, há o lugar do não dito, que é o caso de considerar o prazer implícito no gozo dos direitos sexuais, e este, por sua vez, ser interpretado como o direito de manter uma vida sexual ativa. Enquanto para os homens, gozar de uma vida sexual ativa significa, via de regra, ter prazer, existem várias outras camadas de considerações das quais dependem o prazer feminino, ainda que dentro da possibilidade de ter uma vida sexual ativa.
Sobre a questão, em sua abordagem das capabilities, a filósofa Martha Nussbaum, prevê uma lista de capacidades fundamentais para a vida humana minimamente digna, em uma abordagem dos próprios direitos humanos. Martha Nussbaum (2020) cita, entre as capacidades fundamentais para uma vida digna, a oportunidade para satisfação sexual plena de todos os seres humanos.
Assim, na intersecção entre filosofia e direito, o discurso parece começar a contemplar o prazer feminino. E a construção do discurso é parte fundamental para a elaboração da necessidade humana. Segundo Foucault (2022), para dominar o sexo no plano real, foi necessário, primeiro, reduzi-lo ao nível da linguagem e extinguir a circulação das palavras que o tornavam presente de forma excessivamente sensível, à luz da filosofia, das ciências sociais, das ciências naturais e, também, à luz dos direitos humanos. Uma necessidade humana fundamental não é inexistente porque não foi dita. Dessa forma,
em todo lugar e em todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista, uma verdade talvez adormecida, mas que, no entanto, está somente à espera do nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para ser desvelada. A nós cabe achar a boa perspectiva, o ângulo correto, os instrumentos necessários, pois de qualquer maneira ela está presente aqui e em todo lugar (Foucault, 2023: 190).
Vê-se que o direito à sexualidade plena da mulher está estritamente ligado ao direito do homem à sexualidade. As mulheres, em suas peculiaridades e desejos são em grande parte diminuídas e suas satisfações sexuais vinculadas à satisfação sexual do parceiro. Tampouco essas mulheres reconhecem essa violência destinada ao controle dos seus próprios corpos, pois estão submersas e submetidas ao sistema que as destinou à submissão e a desapropriação da sua própria sexualidade.
Assim, conclui-se que o direito ao exercício da sexualidade através da busca pelo prazer pode ser considerado, conforme apontado no próprio título deste texto, como uma questão de justiça sexual, ou seja, uma questão pública, que atravessa o direito humano à plena vivência de uma vida digna. Para sua efetivação plena, no entanto, é necessário ainda superar recortes estruturais de formas de desigualdade que impedem o pleno acesso a esta justiça para uma grande gama de pessoas, que não são nem lidas socialmente como sujeitos desejantes e aptos a viverem uma vida sexual plena.
Conforme ilustrado pelo caso Carvalho Pinto de Sousa Morais v. Portugal, existe um status quo patriarcal que determina previamente qual a necessidade sexual das mulheres, de acordo com padrões estabelecidos pelas lentes patriarcais. Esses padrões, no caso citado, podem ser a idade ou o status marital da mulher, indicando que sua vida sexual não apenas enfrenta o etarismo, como também está “a serviço” do companheiro.
Mas, de outro modo, também podem significar as razões pelas quais as mulheres são violentadas, ainda “a serviço” do patriarcado, pela roupa que usam ou por seu comportamento social. Em todos os cenários, não é o direito ao exercício sexual através da busca pelo prazer da mulher que está em foco. No momento em que a sexualidade aparece como uma dimensão dos direitos humanos (Lopes, 2022), é necessário estabelecer de qual sexualidade se está falando, a partir de qual perspectiva e para quem. E é necessário dar voz às mulheres, para que se entenda qual é a sua necessidade de exercício sexual e busca pelo prazer.
IV. Considerações finais
O caso Carvalho Pinto de Sousa Morais v. Portugal no Tribunal Europeu de Direitos Humanos assegura que há alguma tutela do Estado sobre o direito ao prazer, como um bem jurídico. Entretanto, o direito ao prazer não está no ordenamento jurídico. É um direito implícito no gozo dos direitos sexuais, no direito a uma vida sexualmente ativa. Tais condições, como vimos, nem sempre contemplam as mulheres. Além disso, por meio de tais implicações, o direito ao prazer está sujeito à leitura da sociedade patriarcal e à interpretação através de estereótipos de gênero e idade, como no caso em questão.
Neste aspecto, a condenação do Estado português no caso dá visibilidade a movimentos anti-patriarcais do direito. Na perspectiva cética a respeito do papel do modo de atuação do direito na construção de uma sociedade igualitária para as mulheres, casos como o do Tribunal Europeu de Direitos Humanos merecem destaque por sua postura progressista. É de extrema importância a construção do discurso, no sentido de nomear estereótipos de gênero e idade, e trazer à luz a falibilidade do Estado na proteção dos direitos fundamentais das mulheres. Se, por um lado, a decisão não unânime do Tribunal Europeu de Direitos Humanos nos ensina que as raízes patriarcais ainda são profundas, por outro lado a construção antidiscriminatória do acórdão nos mostra para qual lugar caminhar-se-á na busca por posicionamentos que respeitam minimamente os direitos das mulheres.
Da mesma forma, da construção do discurso sobre o direito ao prazer é elaborada a necessidade humana fundamental do prazer sexual. O que não está elaborado, não pode ser requerido. Não há luta por aquilo sobre o que não é falado. E o que são os direitos humanos senão a luta constante pela universalidade da dignidade humana? E não fará o prazer, a satisfação sexual, parte das condições mínimas para essa dignidade humana? Entretanto, nomear um direito está muito distante de concretizá-lo, de universalizá-lo. A concretização do direito ao prazer parte da elucidação das condições que o violam. No caso das mulheres, parte do questionamento dos estereótipos e construções de gênero que transitam entre a mulher e sua verdadeira essência, seu verdadeiro “eu” sexual. É, portanto, uma (des)construção social, histórica, antropológica e filosófica.
Essa construção social do direito ao exercício da sexualidade através da busca pelo prazer é, para as mulheres, uma questão de justiça sexual. Mas, como falar em justiça sexual a partir da perspectiva feminina, se o que se tem como referência são os prazeres masculinos? Sem dúvida o caminho a ser trilhado passa pela elaboração do discurso. Pela nomeação e reconhecimento daquilo que não se percebe, do que está nas entrelinhas sociais. Não nomear pode significar estar implícito ou não ser relevante, dependendo das lentes pelas quais são feitas as leituras. Não nomear o direito ao prazer desconsidera essa grande parcela da população que não é considerada implicitamente no termo “direitos sexuais”. Afinal, o que são os direitos sexuais, senão ainda os direitos fundamentais do homem?
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1 Médica, mestranda em Direitos Humanos no Programa de Pós-graduação em Direito da UNIJUÍ. Bolsista CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa Biopolítica e Direitos Humanos. Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: sheila.carvalho@sou.unijui.edu.br
2 Mestranda em Direitos Humanos no Programa de Pós-graduação em Direito da UNIJUÍ. Bolsista CAPES. Integrante do Grupo de Pesquisa Biopolítica e Direitos Humanos. Ijuí, Rio Grande do Sul, Brasil. E-mail: victoria.pedrazzi@sou.unijui.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0009-0004-5422-6328
3 Doutora em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo/RS). Professora do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Direito da UNIJUÍ. https://orcid.org/0000-0003-3808-1064. E-mail: joice.nielsson@unijui.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3808-1064
4 O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais 5.ª edição ou DSM-5 é um manual diagnóstico e estatístico feito pela Associação Americana de Psiquiatria para definir como é feito o diagnóstico de transtornos mentais.
5 No original: “for which the focus of sexual health is not on the sexual “function”, a term that can infer sex as a “job” that the organs perform, but whether individuals feel satisfied with their physical, emotional and social experiences in connection with sex” (Araújo, Zanello, 2022: 03).
6 Disponível em: <Brasil: Comitê da ONU analisa avanços e preocupações na proteção das mulheres ONU News> Acesso em 29. jul. 2024.
7 Disponível em: <ONU cobra Brasil por aborto legal após 12 mil meninas serem mães em 2023 – Geledés (geledes.org.br)> Acesso em 29. jul. 2024.
8 No original: “Sexual desire is a complex phenomenon that comprises different dimensions, such as the biological body, the experience body, emotions, specific cultural framework (including gender, race, social class, education, beliefs, morality, etc.), biographical settings idiosyncratic, the imaginary, and behaviors, among others. Among several sexual desire definitions, we may understand it as a cognitive experience, characterized by thoughts, fantasies, motivations; an emotional entity as sexual interest and desire to have sex; or a behavioral event, such as receptivity or initiation of sexual activity.