Corpos (não)ideais em movimento no contexto da transgeneridade: as mulheres trans migrantes e a (in)efetivação do direito humano à saúde a partir da decolonialidade
(Non)ideal bodies in motion in the context of transgenerity: trans migrant women and the (in)effectiveness of the human right to health from decoloniality
Janaína Machado Sturza1; Gabrielle Scola Dutra2; Cláudia Marília França Lima Marques3
DOI: https://doi.org/10.37767/2591-3476(2025)01
Fecha de envío: 15.03.2025
Fecha de aceptación: 30.05.2025
RESUMO:
O objetivo é fabricar uma imbricação crítica entre o direito humano à saúde e a mobilidade humana global pelas migrações. A base teórica utilizada para a articulação da pesquisa é a Teoria Decolonial, pautando-se no método hipotético-dedutivo, instruído por uma análise bibliográfica e documental. Diante do entrelaçamento entre os eixos saúde, migração e colonialidade, questiona-se: A decolonialidade pode ser vista como um caminho para a efetivação do direito humano à saúde das mulheres trans migrantes? Constata-se que a colonialidade estabelece um corpo ideal (hétero, masculino e branco) reduzido ao binário, utilizado como padrão para o estudo e a aplicação de práticas e políticas de saúde, excluindo o corpo das mulheres trans migrantes. Logo, a decolonialidade, enquanto um movimento de resistência e desmantelamento da colonialidade, pode ser vista como um caminho para desconstrução do corpo idealizado, contribuindo para a efetivação do direito humano à saúde às mulheres trans migrantes.
RESUMEN:
El objetivo es crear una interconexión crítica entre el derecho humano a la salud y la movilidad humana global a través de la migración. El marco teórico utilizado para articular la investigación es la Teoría Decolonial, guiada por el método hipotético-deductivo, informada por el análisis bibliográfico y documental. Dados los ejes entrelazados de la salud, la migración y la colonialidad, la pregunta es: ¿Puede la decolonialidad ser vista como un camino para la realización del derecho humano a la salud de las mujeres trans migrantes? Es claro que la colonialidad establece un cuerpo ideal (hetero, masculino y blanco) reducido a términos binarios, utilizado como estándar para el estudio e implementación de prácticas y políticas de salud, excluyendo los cuerpos de las mujeres trans migrantes. Por lo tanto, la decolonialidad, como un movimiento de resistencia y desmantelamiento de la colonialidad, puede verse como un camino para deconstruir el cuerpo idealizado, contribuyendo a la realización del derecho humano a la salud de las mujeres trans migrantes.
ABSTRACT
The objective is to create a critical connection between the human right to health and global human mobility through migration. The theoretical basis used to articulate the research is Decolonial Theory, based on the hypothetical-deductive method, informed by a bibliographic and documentary analysis. Given the intertwining between the axes of health, migration and coloniality, the question is: Can decoloniality be seen as a path to the realization of the human right to health for trans migrant women? It is clear that coloniality establishes an ideal body (hetero, male and white) reduced to the binary, used as a standard for the study and application of health practices and policies, excluding the bodies of trans migrant women. Therefore, decoloniality, as a movement resistance and dismantling of coloniality, can be seen as a path to deconstruct the idealized body, contributing to the realization of the human right to health for trans migrant women.
PALAVRAS-CHAVE: Direito Humano à Saúde; Mulheres trans migrantes; Colonialidade; Decolonialidade.
PALABRAS CLAVE: Derecho humano a la salud; Mujeres trans migrantes; Colonialidad; Decolonialidad.
KEY WORDS: Human Right to Health; Trans migrant women; Coloniality; Decoloniality.
I. Introdução
Na poesia “Se o futuro nos pertence”, a poetisa travesti brasileira Virgínia Guitzel pronuncia: “Se o mundo fosse livre; Poderíamos reinventá-lo; Seríamos então seres humanos; Melhor preparados; Menos frustrados; Mais amados”. A autora expressa um anseio por um mundo mais justo e livre para as mulheres trans. À vista disso, a utilização dos verbos “seríamos” e “poderíamos” no tempo verbal “futuro do pretérito” indica uma concepção idealizada instaurada na temporalidade cronológica da vida, demonstrando os desafios vivenciados no presente e a ânsia de viver um futuro presentificado por um projeto civilizatório mais sensível e mais humano onde o gênero não se constitui enquanto um marcador limitante, mas como uma potência que produz diversidade em plena carnavalidade social. Entre contenções e performatividades, o gênero, o sexo e a sexualidade são encarnados no corpo do sujeito que encena e produz um horizonte de manifestações plurais, fluídas e metamórficas no palco civilizatório.
Nesse contexto, apresenta-se a imbricação performática entre o gênero e o fenômeno migratório, a partir das experiências e vivências enfrentadas pelas mulheres trans migrantes ao longo dos percursos migratórios ao redor do mundo que repercutem na seara da complexa (in)efetivação dos direitos humanos. Trazer à tona os dilemas civilizatórios dos corpos (não)ideais em movimento no âmbito da transgeneridade significa reconhecer que as mulheres trans migrantes enfrentam locus hostis e multifacetados processos de precariedade e vulnerabilidade de vida, em razão de que os marcadores interseccionais (gênero, raça, classe, nacionalidade, deficiência, status, etc.) atuam para reforçar tais processos. Nesse ritmo de razão sensível, percebe-se que as mulheres trans migrantes seriam mais livres e viveriam em um mundo muito mais justo se houvesse uma análise sensível acerca das questões generificadas que permeiam seus percursos migratórios, especialmente, no que concerne ao acesso (ou a falta dele) aos direitos humanos, especificamente, o direito humano à saúde.
Diante disso, a presente pesquisa busca compreender os limites e as possibilidades da (in)efetivação do direito humano à saúde para as mulheres trans migrantes no Brasil. Nesse sentido, no contexto migratório, observa-se que o direito humano à saúde é positivado nacionalmente tanto na esfera constitucional, quanto na esfera infraconstitucional. Do mesmo modo, é positivado internacionalmente por intermédio das principais cartas e declarações de direitos. Todavia, nota-se que, na prática, inexiste a produção dos efeitos jurídicos de tal direito humano em prol de tais sujeitos. A ausência de garantia da efetivação do direito humano à saúde advém, principalmente, das construções da colonialidade, as quais determinam a existência de um corpo ideal (hétero, masculino e branco) nas práticas e políticas de saúde e contribuem para a exclusão dos corpos dissidentes, notadamente, essa “marcação” atravessa o corpo de minorias, como por exemplo, o das mulheres trans.
Em decorrência disso, essas mulheres se deparam com um sistema de saúde que, em que pese seja gratuito e universal, é pouco inclusivo e desconsidera as especificidades interseccionais da pluralidade humana. Perante esse contexto, surge a decolonialidade, enquanto um movimento de resistência e desconstrução da colonialidade, como um caminho e uma possibilidade para a efetivação do direito humano à saúde das mulheres trans migrantes. Assim sendo, entre biografias e cartografias migratórias, esta pesquisa se dedica a explorar a temática das mulheres trans migrantes no Brasil no contexto do direito humano à saúde a partir da decolonialidade. Num primeiro momento, investiga-se a dinâmica de complexidade dos fluxos migratórios das mulheres trans migrantes para o Brasil sob a perspectiva de gênero. Por último, analisa-se o direito humano à saúde das mulheres trans migrantes sob as lentes teóricas da decolonialidade.
A pesquisa adota o método hipotético-dedutivo e se baseia em uma análise bibliográfica e documental para a compreensão da temática apresentada. A base teórica utilizada para a articulação da pesquisa é a Teoria Decolonial. Diante da intersecção entre o direito à saúde, gênero e migração, questiona-se: A decolonialidade pode ser vista como um caminho para a efetivação do direito humano à saúde das mulheres trans migrantes? Esse é o questionamento que norteia a análise e produz a fundamentação teórica a seguir para o delineamento de seus limites e possibilidades de desvelamento.
II. Transgeneridade e migração: uma abordagem dos movimentos de mobilidade humana protagonizados por mulheres trans migrantes
Numa dimensão global, sabe-se que a migração é um fenômeno que acompanha o desenvolvimento civilizatório, no sentido de que os projetos migratórios são marcados pela pluralidade biográfica e cartográfica do “ser migrante” que decide empreender mobilidade humana em razão de múltiplos fatores que vão desde a busca por melhores condições de vida até o deslocamento forçado com o intuito de fugir de violações generalizadas de seus direitos humanos. Sob a perspectiva da diversidade, no cerne dos fluxos migratórios, (sobre)vivem existências plurais, fluídas e metamórficas que desafiam as normas dos gêneros, sexos e sexualidades, para performar suas nuances vitais no palco civilizacional. Nesse contexto, os movimentos migratórios tornam-se espaços dinâmicos e multifacetados onde o “ser migrante” é atravessado por marcadores interseccionais (gênero, raça, classe, nacionalidade, deficiência, status, etc.) que paradoxalizam seus modos de ser/estar/agir no âmbito do seu deslocamento desde o país de origem, passando pelos países de trânsito e chegando no país de origem.
Em conformidade com o preceituado por Roberto Marinucci sobre as problemáticas que surgem no contexto migratório dos migrantes sob a égide os marcadores interseccionais:
Na ótica do paradigma da interseccionalidade, determinadas problemáticas comuns nos processos das migrações – discriminações, violências, isolamento, desemprego ou precarização do trabalho, entre outras – se tornam ainda mais severas no universo LGBTI, devido, possivelmente, à intersecção da LGBTfobia com outras fontes de discriminação (racismo, xenofobia, machismo, etnocentrismo), bem como à ausência ou precariedade de políticas públicas específicas nos países de chegada e, por vezes, à dificuldade de encontrar e contar com redes sociais de apoio (inclusive redes familiares) (Marinucci, 2020, p. 08).
Nessa trama, o sujeito incorpora um campo de limites e possibilidades na dimensão de sua experiência existencial, tendo em vista que a significação do gênero pode ser desconstruída e reinventada a todo o tempo pois extravasa as categorias preestabelecidas pela heteronormatividade compulsória e pela hegemonia dos discursos sobre o corpo e o desejo. Sendo assim, os corpos que ousam enfrentar as normas dominantes de gênero e de tantos outros marcadores interseccionais, bem como aqueles que não se reduzem às expectativas tradicionais e hegemônicas são compreendidos enquanto corpos dissidentes. Imediatamente, se inaugura um arsenal institucional enquanto um projeto ardilosamente arquitetado com o intuito de produzir regulamentações e normatizações por intermédio de práticas de extermínio e patologização em detrimento dos corpos dissidentes para enrijecer a fluidez das suas taxonomias de gênero (Preciado, 2022).
Na seara da transgeneridade, esse conjunto de “regras” povoa os modos de ser/estar/agir dos sujeitos e patologiza todos aqueles corpos que não estão em consonância com o binário (homem/mulher) e suas características totalizadoras. Logo, a concepção sobre “dissidência” implica uma quebra ou resistência ao que é considerado “normal”, “aceitável” ou “tradicional”, em razão de que os corpos dissidentes são aqueles que não seguem as normas estabelecidas e que se expressam de maneiras inéditas e autênticas na trama histórica. Na instância corpórea, a dissidência personifica-se enquanto uma estratégia de resistência e subversão que “irrita” as engrenagens das imposições hierárquicas e das estruturas de poder para considerar novas formas de vida e manifestações existenciais. Nessa inventividade criativa, os corpos dissidentes promovem um manifesto contrassexual em prol da celebração da diversidade e das potências vitais que permeiam o arranjo biográfico e cartográfico da humanidade (Preciado, 2022).
A título exemplificativo sobre a dissidência, tem-se movimentos migratórios protagonizados por migrantes LGBTQI+ que empreendem mobilidade humana e encontram novas significações e formas de expressão para performatizar suas existências dissidentes em um lugar seguro que efetive seus direitos humanos a partir das relações sociais que perfectibilizam com a população autóctone do país de destino. Assim, pode-se dizer que “o gênero não é simplesmente performativo (isto é, um efeito das práticas culturais linguístico-discursivas), como desejaria Judith Butler. O gênero é, antes de tudo, prostético, ou seja, não se dá senão na materialidade dos corpos” (Preciado, 2022, p. 40). Os sujeitos LGBTQI+ são constituídos por intermédio de uma fluidez sem precedentes sob a égide da tentativa de fundação de uma sociedade contrassexual que pressupõe “que se apaguem as denominações “masculino” e “feminino” correspondentes às categorias biológicas (homem/mulher, macho/fêmea) da carteira de identidade, assim como de todos os formulários administrativos e legais de caráter estatal” (Preciado, 2022, p. 45).
Seguindo tal perspectiva, de acordo Manual de Atendimento Jurídico a Migrantes e Refugiados publicado pela Organização Internacional para as Migrações (OIM), percebe-se que as principais necessidades dos migrantes e refugiados LGBTQI+ são:
i. Reconhecimento da condição de refúgio por perseguição a pessoas LGBTQI+; ii. Produção de relatórios sobre dados relativos aos números de solicitações de refúgio por orientação sexual e/ou identidade de gênero; iii. Inclusão de nome social no Protocolo de Solicitação de Refúgio e Registro Nacional Migratório (RNM); iv. Atendimento do(a) migrante que foi vítima de LGBTQI+fobia; v. Atendimento da migrante travesti ou transexual em situação de violência doméstica; vi. Celebração do contrato de união estável e casamento para migrantes LGBTQI+; vii. Reunião familiar para companheiro(a) do mesmo gênero (OIM, 2022, p. 09).
Especificamente, em relação aos movimentos de mobilidade humana protagonizados por mulheres trans migrantes percebe-se uma imbricação interseccional entre a transgeneridade e o fenômeno migratório, à medida que a mulher trans é compreendida como uma pessoa que nasceu e o discurso médico lhe atribuiu o sexo masculino, no entanto, a mulher trans identifica-se com “o gênero feminino, independentemente das alterações corporais e legais efetuadas. A sua não conformidade com as normas impostas pela sociedade, pode colocá-la numa situação de maior vulnerabilidade” (Costa; Rodrigues, 2022, p. 164). Logo, tendo em vista que o gênero é concebido enquanto um marcador que oscila em conformidade com as relações de poder, pressupõem “diferentes circuitos de relações e de interlocutores(as), condição financeira, acesso e conhecimento de técnicas e tecnologias de mudança do corpo que estão ligados a diferentes momentos da trajetória migratória” (Meneses; Ennes, 2023, p. 74).
Nessa dinâmica de gênero, muitas mobilidades humanas empreendidas por mulheres trans migrantes estão vinculadas com o enfrentamento de padrões perpetrados pela compulsoriedade da cis-heteronormatividade que opera enquanto uma potência de “repulsão e de atração, que quanto mais forte ou tênue se revelar nos locais de origem, passagem e destino, acaba produzindo reconstruções identitárias do gênero e sexualidade em seus trânsitos espaço-temporais” (Meneses; Ennes, 2023, p. 80). Outrossim, as mulheres trans enfrentam inúmeras opressões em todas as fases do processo migratório, estão à mercê de processos forjadores (obstaculização de acesso a serviços humanitários, barreiras para o reconhecimento de suas demandas protetivas, violência, xenofobia, exploração, extorsão, racismo, discriminação, preconceito, homofobia, transfobia, entre outros), inclusive nos espaços que deveriam acolhê-las “como abrigos e de outras pessoas migrantes e refugiadas. O isolamento e a marginalização agravam a vulnerabilidade e demandam intervenções nos setores de proteção, integração socioeconômica, meios de vida e documentação” (Serviço Jesuíta aos Migrantes e Refugiados, 2022, p. 03).
Nesse espetáculo dissidente, “por trás das máscaras da feminilidade e da masculinidade dominantes, por trás da heteronormatividade, se escondem de fato múltiplas formas de resistência e de desvio” (Preciado, 2022a, p. 30). Dessa forma, “no discurso médico e psicológico dominante, o corpo trans é uma colônia” (Preciado, 2022a, p. 37). No pensamento de Paul B. Preciado, o corpo trans se (re)configura enquanto uma fronteira “cuja extensão e forma só se perpetuam pela violência. Cortar aqui, colar acolá, suspender esses órgãos, substituí-los por outros” (Preciado, 2022a, p. 37). No campo interseccionado entre a transgeneridade e a migração, pode-se produzir uma analogia a partir da ideia de que “o migrante perdeu o Estado-nação. O refugiado perdeu a casa. A pessoa trans perdeu o corpo. Todos eles atravessaram a fronteira. A fronteira os constitui e os atravessa, os destitui e os derruba” (Preciado, 2022a, p. 37).
Sob a perspectiva da intersecção entre transgeneridade e migração, constata-se que de acordo com a dinâmica de vida das mulheres trans migrantes, o horizonte masculino e feminino operacionalizam-se como territórios “fluidos e passíveis de trânsito em um processo de interdependência com a migração da terra natal para outros lugares” (Meneses; Ennes, 2023, p. 81). Sendo assim, “em todos os lugares, o corpo trans é odiado, ao mesmo tempo que é fantasiado, desejado e consumido. O corpo trans é uma potência de vida, é a inesgotável Amazônia que se espalha pelas selvas, resistindo a barragens e extrações” (Preciado, 2022a, p. 38). Nessa lógica decolonial, “o corpo trans é para a epistemologia da diferença sexual o que o continente americano foi para o Império espanhol: um lugar de imensa riqueza e cultura impossível de reduzir ao imaginário do império” (Preciado, 2022a, p. 38). Sobretudo, percebem-se a todo o instante, processos de vulnerabilidade e precariedade de vida que atravessam a (sobre)vivência dos corpos trans em mobilidade humana.
Nas palavras de Roberto Marinucci, sobre a complexidade paradoxal dos movimentos migratórios protagonizados pelo “ser migrante” dissidente que desencadeiam o “sexílio” em prol da inclusão social:
Cabe destacar, entretanto, que nem todos os deslocamentos de pessoas LGBTI são movidos por perseguições ou ameaças de vida. Muitas vezes, foge-se de um opressivo controle social em uma sociedade marcadamente patriarcal e heteronormativa, que acaba negando o direito de externalizar a própria identidade de gênero ou, inclusive, o direito à plena inclusão cidadã. A migração (o assim chamado “sexílio”, exílio sexual), neste caso, se torna uma das possíveis estratégias de superação de adversidades, em busca da inclusão social em outro lugar (Marinucci, 2020, p. 08).
Outra questão que merece atenção é o fato de que os migrantes LGBTQI+ quando estão vivendo no país de destino, ainda mantém relações transnacionais com seus familiares na terra natal, muitas vezes enviam remessas à mesma família que sofreram violências e rejeições, à medida em que no momento do envio dessas remessas pode-se perceber “dinâmicas complexas de negociação e reconhecimento de afetos. Aqui se insere todo um âmbito de reflexão de cunho psico-antropológico sobre a saúde mental de pessoas marcadas por sofrimentos, discriminações e violências” (Marinucci, 2020, p. 08). Da mesma forma, tais horizontes problemáticos que envolvem a transgeneridade e as migrações numa perspectiva de diversidade, “se inserem em um contexto paradoxal marcado por tendências antagônicas: avanços no reconhecimento dos direitos das minorias, e, ao mesmo tempo, fortes tendências de criminalização das migrações e das pessoas migrantes, sobretudo quando irregulares” (Marinucci, 2020, p. 07).
Em contrapartida, também os movimentos geográficos “praticados por estas mulheres trans e travestis possibilita o contato com outras pessoas trans e travestis, assim como o acesso a espaços criados para a socialização e entretenimento da população LGBTQI+” (Meneses; Ennes, 2023, p. 81). Nesse limiar de (in)visibilidades, “tornar-se visível (coming-out) permite fortalecer as lutas pelo reconhecimento, além de garantir o direito de externalizar a própria identidade; por outro lado, a invisibilidade pode se tornar uma necessidade a fim de evitar violências e outras formas de discriminação” (Marinucci, 2020, p. 09). Sobretudo, constata-se que as mulheres trans migrantes seriam mais livres e viveriam em um mundo muito mais justo se houvesse uma análise sensível acerca das questões generificadas que permeiam seus percursos migratórios, especialmente, no que concerne ao acesso (ou a falta dele) aos direitos humanos, especialmente, o direito humano à saúde, já que a vida está diretamente ligada a ele.
Sob tal perspectiva, a migração produz inúmeros impactos na saúde do “ser migrante” dissidente, tendo em vista que a imbricação entre a transgeneridade, a migração e a saúde revela que esses três eixos problemáticos interagem entre si e repercutem na vida das mulheres trans migrantes de forma a complexificar seus percursos migratórios e suas relações sociais, à medida em que tal combinação interseccional fabrica multifacetadas camadas de vulnerabilidade e precariedade de vida que assolam os projetos migratórios protagonizados pelas mulheres trans migrantes. Nesse sentido, arrisca-se em apostar na construção de políticas públicas de saúde que incorporem a perspectiva decolonial em suas lógicas de operacionalização para que as mulheres trans migrantes possam ter seus direitos humanos efetivados, especialmente, o direito humano à saúde, ao passo que essa lente decolonial implementada no cerne do funcionamento das políticas públicas de saúde detém potencialidade de promover uma (re)estruturação na qualidade do atendimento às mulheres trans migrantes.
III. O direito humano à saúde das mulheres trans migrantes sob as lentes da decolonialidade
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estabelece a saúde como um completo estado de bem-estar físico, mental e social e não apenas a mera ausência de doenças. Além de definir a saúde de uma maneira que marcou o século XX, a OMS define, pela primeira vez como direito fundamental, o direito de gozar do melhor estado de saúde possível, e isto sem discriminação racial, religiosa, política, econômica ou social (Ventura, 2013). Na mesma toada, a saúde foi reconhecida como um direito humano fundamental no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 1948, a qual estabeleceu que todo ser humano tem direito a um padrão de vida adequado que assegure a si e à sua família saúde, bem-estar, incluindo alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais necessários (DUDH, 1948).
A respeito disso, no âmbito brasileiro, a Constituição Federal do Brasil (CF/88), promulgada em 1988, estabelece o caráter social do direito humano fundamental à saúde. Em seu artigo 6° define “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição” (Brasil, 1998). Ainda, a Constituição Federal definiu, em seu artigo 196, que “A saúde é direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação” (Brasil, 1998). Assim, com a promulgação da CF/88, o Sistema Único de Saúde foi introduzido a partir da Lei nº 8.080, de 1990.
Sobre a criação do nosso sistema de saúde, Souza (2019) explica que o movimento de Reforma Sanitária foi idealizado e liderado majoritariamente por homens brancos da classe média, especialmente médicos do sistema e professores universitários, fato que contribuiu para a reprodução da branquitude e da heteronormatividade na construção do SUS. Dessa forma, o movimento não abordou o direito à saúde a partir dos saberes e experiências de corpos racializados e colonizados, recorrendo, assim, à noção de um corpo universal (masculino, branco, heterossexual). Nesse contexto, a autora argumenta que a imparcialidade atribuída ao cânone científico reflete, na verdade, uma perspectiva tendenciosa, reproduzindo a visão do grupo dominante. Essa suposta neutralidade se apresenta como universal, consolidando a hegemonia desse grupo sobre a visão de mundo no campo da saúde.
Para sustentar essa hegemonia, promove-se a ideia de que o conhecimento só pode ser gerado a partir da objetividade científica, enquanto se silencia a voz dos indivíduos pesquisados, negando-lhes a capacidade de contribuir para a produção de conhecimento. Assim, a autora entende que é necessário defender uma ciência que se baseie na experiência do corpo. Nesse sentido, é fundamental reconhecer que o corpo é influenciado por diversos marcadores sociais, como gênero, raça, classe, sexualidade, território e nacionalidade. Esse corpo não apenas elabora sua própria forma de conhecimento, mas também se posiciona dentro da hierarquia social e identifica relações de poder (Souza, 2019).
No caso das mulheres migrantes atravessadas por marcadores interseccionais que fabricam processos de vulnerabilidade e precariedade de vida, existe uma lógica calcada na imposição do sistema moderno-colonial de gênero, à medida que isso significa que a natureza e o alcance das mudanças na estrutura social foram impostos por processos forjadores implementados pelo capitalismo eurocentrado colonial/moderno. Logo, “Esos cambios se introdujeron a través de procesos heterogéneos, discontinuos, lentos, totalmente permeados por la colonialidad del poder, que violentamente inferiorizaron a las mujeres colonizadas” (Lugones, 2008, p. 92). Do mesmo modo, “Concebir el alcance del sistema de género del capitalismo eurocentrado global, es entender hasta qué punto el proceso de reducción del concepto de género al control del sexo, sus recursos, y productos es constitutiva de la dominación de género” (Lugones, 2008, p. 93).
Em síntese, para María Lugones, o sistema moderno-colonial de gênero se operacionaliza a partir de tal dinâmica:
Este sistema de género se consolidó con el avance del(los) proyecto(s) colonial(es) de Europa. Tomó forma durante el período de las aventuras coloniales de España y Portugal y se consolidó en la modernidad tardía. El sistema de género tiene un lado visible/claro y uno oculto/oscuro. El lado visible/claro construye, hegemónicamente, al género y a las relaciones de género. Solamente organiza, en hecho y derecho, las vidas de hombres y mujeres blancos y burgueses, pero constituye el significado mismo de «hombre» y «mujer» en el sentido moderno/colonial. La pureza y la pasividad sexual son características cruciales de las hembras burguesas blancas quienes son reproductoras de la clase y la posición racial y colonial de los hombres blancos burgueses. Pero tan importante como su función reproductora de la propiedad y la raza es que las mujeres burguesas blancas son sean excluidas de la esfera de la autoridad colectiva, de la producción del conocimiento, y de casi toda posibilidad de control sobre los medios de producción. La supuesta y socialmente construida debilidad de sus cuerpos y de sus mentes cumple un papel importante en la reducción y reclusión de las mujeres burguesas blancas con respecto a la mayoría de los dominios de la vida; de la existencia humana. El sistema de género es heterosexualista, ya que la heterosexualidad permea el control patriarcal y racializado sobre la producción, en la que se incluye la producción del conocimiento, y sobre la autoridad colectiva (Lugones, 2008, p. 98).
A saúde coletiva critica a normatização dos corpos, mas falha em considerar a racialização desses corpos. Dessa forma, é necessário refletir sobre como os planejadores de políticas de saúde também possuem a tendência de abordar a saúde a partir de uma perspectiva normatizada, sem reconhecer a diversidade das experiências. A normatização e o apagamento dos corpos geram impactos significativos nas práticas de saúde, ao promoverem a noção de um corpo universal. Essa concepção ignora as diversas experiências que moldam a identidade de cada indivíduo. Elementos como gênero, raça, classe, geração, sexualidade e nacionalidade ficam invisibilizados na ideia de corpo que é imposta pela branquitude colonizadora. Assim, o corpo universal acaba sendo predominantemente branco e cis-heteronormativo (Souza, 2019).
Nesse viés, surgem corpos lidos como “estranhos”:
A modernidade colonial foi bem-sucedida em impor a criação de um ‘Outro’, ou, aquele que é estranho à norma do corpo branco cis-heterossexual. É importante deixar claro que desde então a violência é exercida sobre esses corpos, que, por sua vez, não enxergam a possibilidade de existência fora desse signo. Assim, esse corpo que não é reconhecido pelo conjunto da sociedade, pois está fora da norma, ao circular pelo sistema de saúde sofre o estigma da violência (Souza, 2019, p. 198).
Ao abordar a saúde a partir da noção de corpos universais, ou seja, corpos que não levam em conta os diferentes marcadores sociais (classe, raça, nacionalidade, gênero), é possível perceber que o acesso ao direito humano à saúde e a própria prática de cuidado são afetados. Essa visão representa um grande obstáculo para a efetivação das diretrizes do SUS, principalmente a universalidade. Diante disso, é fundamental uma mudança de paradigma decolonial no pensamento sanitário brasileiro, especialmente na elaboração de políticas de saúde, a fim de que possamos enfrentar as desigualdades profundamente enraizadas nesse sistema (Souza, 2019). Nesse sentido, Aguiar (2023) explica que, ao decolonizar a saúde, propomos um movimento que impacta a racionalidade científica desse campo e os imaginários de todos os envolvidos na mudança desse paradigma.
Sobre a decolonialidade, Maldonado-Torres explica:
decolonialidade como um conceito oferece dois lembretes-chave: primeiro, mantém-se a colonização e suas várias dimensões claras no horizonte de luta; segundo, serve como uma constante lembrança de que a lógica e os legados do colonialismo podem continuar existindo mesmo depois do fim da colonização formal e da conquista da independência econômica e política. É por isso que o conceito de decolonialidade desempenha um importante papel em várias formas de trabalho intelectual, ativista e artístico atualmente (Maldonado-Torres, 2018, p. 4).
A decolonialidade, como uma luta viva em meio a visões e maneiras competitivas de experienciar o tempo, o espaço e outras coordenadas básicas de subjetividade e sociabilidade humana, necessita de uma abordagem diferente. A teoria decolonial reflete criticamente sobre nosso senso comum e sobre pressuposições científicas referentes a tempo, espaço, conhecimento e subjetividade, entre outras áreas-chave da experiência humana, permitindo-nos identificar e explicar os modos pelos quais sujeitos colonizados experienciam a colonização e, ao mesmo tempo, fornece ferramentas conceituais para avançar a descolonização. Esse envolvimento simultâneo, construtivo e crítico é a segunda contribuição fundamental e uma função essencial do pensamento e da teoria decolonial (Maldonado-Torres, 2018).
Diante disso, tendo a decolonialidade como base, é preciso romper com visões que colocam o ser humano, especialmente o homem branco e cisgênero, em uma posição de superioridade em relação aos demais seres e à natureza. Assim, é necessário substituir essa suposta competitividade e destruição em busca de uma saúde que adote dimensões como interdependência e ecodependência, baseadas em valores como solidariedade, generosidade, empatia, respeito e cooperação. Dessa forma, além de reconhecer as graves implicações que essas perspectivas trazem para a saúde coletiva, é extremamente necessário que esse campo promova uma reconexão intensa e contínua entre os seres humanos e a natureza, para que possamos desenvolver propostas que tornem a vida uma experiência gratificante e prazerosa (Aguiar, 2023).
Perante esse contexto, nota-se que as trans migrantes enfrentam uma saúde idealizada a partir de um corpo eurocêntrico, de modo que é preciso estabelecer a decolonialidade para superar as barreiras enfrentadas por essa população. Nesse sentido, é preciso trazer a decolonialidade para vencer os obstáculos que surgem a partir dessa idealização. Nesse sentido, o “Manual de atendimento humanizado a migrantes internacionais LGBTQI+” estabelece diretrizes acerca do atendimento humanizado para as trans migrantes:
Faça um Diagnóstico em Diversidade, Equidade e Inclusão, que permita entender o perfil das pessoas colaboradoras, assim como os conhecimentos que elas têm sobre migração, gênero, LGBTQI+, raça/etnia, deficiência, etc. Além disso, identifique situações de discriminação, microagressões e outras situações de violência que possam ter acontecido entre colegas ou com o público atendido; Fomente a aprendizagem continuada, com formações, capacitações, cursos, pílulas de conhecimento sobre temas relacionados a atendimento humanizado, migração internacional LGBTQI+, comunicação inclusiva, entre outros assuntos. Ter uma equipe preparada para mediar e resolver diversas situações é imprescindível para a construção de um ambiente respeitoso e inclusivo; Nas formações sobre migração internacional é importante ressaltar o tipo de documentação que a pessoa migrante poderá apresentar e que isso não deve impedir seu atendimento nos serviços públicos. Por exemplo, o protocolo de solicitação de refúgio, embora seja a metade de uma folha de papel sulfite, contém um código QR que verifica sua autenticidade; Faça articulações com redes de cuidado da saúde mental. Se possível, ofereça serviços psicológicos em parceria com áreas ou instituições especializadas; Adapte o espaço físico de modo que transmita acolhimento e segurança, deixando assim a pessoa atendida mais à vontade para falar: » A distribuição dos objetos também comunica. Por isso, organize as cadeiras de um modo que seja o mais horizontal possível (por exemplo, em rosa, caso haja muitas pessoas). Além disso, os materiais informativos devem estar ao alcance da pessoa atendida (Collado; Schuña; Botero; Torrez, 2022, p. 10).
Além disso, o manual estabelece a necessidade da utilização de uma comunicação inclusiva. Nesse sentido, conceitua que a comunicação inclusiva de gênero busca integrar, valorizar, respeitar e acolher as diversas identidades de gênero, fundamentando-se no princípio de que a empatia é essencial para uma interação respeitosa e agregadora. Além disso, não se restringe apenas à transmissão verbal da informação, mas também considera elementos como entonação da voz, expressão facial e postura corporal, especialmente em contextos de atendimento (Collado; Schuña; Botero; Torrez, 2022).
À vista disso, o manual elenca como evitar violências discursivas contra a população migrante LGBTQI+:
Prepare um protocolo/roteiro de atendimento que inclua a sua apresentação pessoal e manifeste seu interesse em saber o nome e o pronome da pessoa atendida (inclua essa pergunta nas fichas institucionais); Apresente brevemente a instituição, os serviços que ela oferece e os acordos de sigilo para o atendimento; A expressão de gênero não define a identidade de gênero nem a orientação sexual das pessoas. Portanto, nunca suponha o pronome da pessoa atendida ou que ela gostaria de ser chamada pelo nome civil. Para saber essas informações, faça perguntas como: “como gostaria de ser chamada?”; “quais pronomes você prefere?”. A partir de então, use durante todo o atendimento o pronome e o nome informados; Apenas pergunte o nome civil da pessoa caso seja necessário para registro institucional; Caso a pessoa atendida informe a preferência pelo uso de pronomes neutros, utilize as terminações com “e” e/ou “u”, tanto na escrita quanto na oralidade. Por exemplo: “Olá, meu nome é Rodri e minha nacionalidade é chilene e uso o pronome elu”; Não faça perguntas invasivas sobre quando a pessoa se “assumiu” LGBTQI+ ou sobre o corpo dela (sobre tratamento hormonal ou processos de transição, por exemplo); Use as expressões “pessoa” transgênera, “pessoa” transexual, “pessoa” não binária, já que somos “pessoas” antes de qualquer outra classificação. Se informe sobre a linguagem inclusiva de gênero e consulte materiais de apoio para não exercer violências discursivas. Recomendamos a cartilha Comunicação Inclusiva de gênero, da Rede MILBi+; Forneça materiais informativos em outros idiomas para pessoas migrantes internacionais que ainda não falam português, especialmente sobre o acesso a direitos (leis, instituições parceiras) e a prevenção, combate e denúncia de violências e discriminações dirigidas a essa população; Procure parcerias institucionais para traduzir os materiais informativos; Tenham disponíveis alguns aplicativos de tradução simultânea de voz, como o Google Tradutor e o iTranslate Tradutor (o que pode ser útil, inclusive, no atendimento de pessoas analfabetas). Não infantilize as pessoas migrantes internacionais crendo que elas não vão entender o que está sendo informado. Caso perceba alguma dificuldade de entendimento, pergunte de maneira cuidadosa, estabelecendo uma relação de troca (Collado; Schuña; Botero; Torrez, 2022, p. 16).
Nesse contexto, o manual também explica que pessoas migrantes internacionais têm o direito ao uso do nome social em todos os documentos vigentes no Brasil, sendo um direito garantido a indivíduos com identidades de gênero diversas, como pessoas transgêneras, travestis e transexuais, que não se identificam com o nome registrado na certidão de nascimento. Conforme previsto no Código Civil e em dispositivos legais, como os artigos 2 e 3 do Decreto nº 8.727/2016 e os incisos 4 e 5 do Art. 69 do Decreto nº 9.199/2017, alterado pelo Decreto nº 9.631/2018, a inclusão do nome social pode ser feita em documentos oficiais acompanhados do nome civil. Além disso, recomenda-se que as instituições respeitem o nome social nos registros internos, independentemente da atualização dos documentos de identidade, e orientem as pessoas migrantes sobre os procedimentos necessários para a regularização dos documentos junto aos órgãos competentes (Collado; Schuña; Botero; Torrez, 2022).
Diante disso, nota-se que, no campo sanitário, é preciso incorporar perspectivas decoloniais, a fim de construir práticas de saúde que visem um atendimento que considere as especificidades dos corpos trans. À vista disso, a partir da decolonidalidade, é possível traçar um caminho mais plural e humano, promovendo a superação e o rompimento dos padrões estabelecidos, os quais sustentam a hierarquização dos corpos, especialmente a normatização do homem cisgênero como posição de superioridade em relação aos demais. Logo, “os direitos humanos em sua forma abstrata e descontextualizada pouco significam. Como esta noção é traduzida na prática – e suas consequências particulares – depende de relações de poder forjadas em contextos históricos específicos e expressas em categorias semânticas precisas” (Fonseca; Cardarello, 1999, p. 85). Portanto, a decolonialidade surge como um caminho capaz de desmantelar as construções da colonialidade e a criação desse corpo ideal, assegurando, assim, a efetivação do direito humano à saúde para as mulheres trans migrantes.
IV. Considerações finais
A título de conclusão, constata-se que diante do entrelaçamento entre os eixos saúde, migração e colonialidade, a decolonialidade pode ser vista como um caminho para a efetivação do direito humano à saúde das mulheres trans migrantes, à medida em que a lógica da colonialidade estabelece um corpo ideal (hétero, masculino e branco) reduzido ao binário (homem-mulher), o qual é utilizado como padrão para o estudo e a aplicação de práticas e políticas de saúde, excluindo o corpo dissidente das mulheres trans migrantes e totalizando os marcadores interseccionais (gênero, raça, classe, nacionalidade, deficiência, status, etc.). Os percursos de mobilidade humana protagonizados pelas mulheres trans migrantes perfectibilizam-se enquanto caminhos e descaminhos hostis que presentificam processos de vulnerabilidade e precariedade e vida. Nesse cenário hostil, a imbricação performática entre o gênero e o fenômeno migratório, revela as experiências e vivências enfrentadas pelas mulheres trans migrantes ao longo dos percursos migratórios ao redor do mundo que repercutem na seara da complexa (in)efetivação dos direitos humanos, especialmente, no âmbito do direito à saúde.
Logo, a decolonialidade, enquanto um movimento de resistência e desmantelamento da colonialidade, pode ser vista como um caminho para desconstrução do corpo idealizado, contribuindo para a efetivação do direito humano à saúde às mulheres trans migrantes e produzindo diversidade no cerne dos fluxos migratórios do mundo real, à medida em que também contribui para potencializar a pluralidade, fluidez e metamorfose das manifestações inéditas dos corpos dissidentes que empreendem mobilidade humana tanto em busca de melhores condições de vida quanto para salvaguardar a própria vida diante de graves violações aos seus direitos humanos. Visibilizar essas histórias dissidentes sob a égide da ascensão de uma sociedade contrassexual que reconheça as especificidades de gênero que circundam a vitalidade do “ser migrante” LGBTQI+ significa valorar o horizonte biográfico e cartográfico que insere uma cota de diversidade no palco civilizatório.
Referências
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1 Pós-Doutora pela Università Tor Vergata (Itália). Pós-doutora em Direito pela Unisinos. Doutora em Direito pela Universidade de Roma Tre/Itália. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC. Especialista em Demandas Sociais e Políticas Públicas também pela UNISC. Professora na Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ, lecionando na graduação em Direito e no Programa de pós-graduação em Direito - mestrado e doutorado. Integrante da Rede Iberoamericana de Direito Sanitário. Integrante do grupo de pesquisa Biopolítica e Direitos Humanos (CNPq). Pesquisadora Gaúcha FAPERGS – Edital N° 09/2023 (2024-2027). E-mail: janasturza@hotmail.com.
2 Pós-Doutora em Direito pela UNIRITTER com Bolsa CAPES. Doutora em Direito pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ (Área de Concentração: Direitos Humanos). Mestre em Direito pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI (Área de Concentração: Direitos Especiais). Professora dos Cursos de Graduação em Direito da UNIJUÍ e do Centro Universitário de Balsas/MA (UNIBALSAS). Pesquisadora Recém-Doutora FAPERGS (Edital FAPERGS nº 08/2023 ARD/ARC). Membro do grupo de pesquisa: “Biopolítica e Direitos Humanos”, cadastrado no CNPQ e vinculado ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos Humanos, Mestrado e Doutorado da UNIJUÍ. Advogada.
E-mail: gabrielle.scola@unijui.edu.br.
3 Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos da Universidade Regional do Noroeste do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ), sob orientação da Professora Pós Doutora Janaína Machado Sturza. Bolsista CAPES Integral. Especialista em Direito Civil pela Universidade Dom Alberto, Santa Cruz do Sul/RS. Especialista em Direito Penal pela Universidade Dom Alberto, Santa Cruz do Sul/RS. Graduada em Direito pela Universidade de Cruz Alta, Cruz Alta/RS. E-mail: claufl1903@gmail.com.