A judicialização do home care e os limites da justiça gratuita: reflexões a partir da experiencia médica pericial e dos recentes escândalos de fraude no Rio Grande do Sul
The judicialization of home care and the limits of free justice: reflections from the medical expert's experience and the recent fraud scandals in Rio Grande do Sul
Luana Carolina Bonfada1; Maurice Rodrigues Uebel2
DOI: https://doi.org/10.37767/2591-3476(2025)10
Fecha de envío: 30.05.2025
Fecha de aceptación: 11.07.2025
RESUMO:
O direito à saúde é constitucional e internacionalmente reconhecido, seja de forma pública ou privada, todo cidadão merece ter tal direito fundamental assegurado. O tratamento em home care há muito vem sendo concedido com base, principalmente, na jurisprudência dos Tribunais Superiores. Recentemente no estado do Rio Grande do Sul o Ministério Público desencadeou operações para desmantelar esquemas fraudulentos envolvendo a concessão de tais tratamentos, apontando prejuízos financeiros exorbitantes aos cofres públicos. Com isso, a presente escrita faz análise deste trabalho desempenhado pelo Parquet mas, sobremaneira, da imprescindibilidade da perícia médica minuciosa para a concessão dos referidos pleitos. A partir deste trabalho indispensável a ser realizado pelo perito médico, se esclarece como a justiça gratuita, nos termos propostos atualmente, não tem capacidade financeira para suprir tais custos a longo prazo.
RESUMEN:
El derecho a la salud es constitucional y está reconocido internacionalmente. Ya sea pública o privada, todo ciudadano merece tener garantizado este derecho fundamental. Desde hace tiempo, la atención domiciliaria se ha otorgado principalmente con base en la jurisprudencia de los Tribunales Superiores. Recientemente, en el estado de Rio Grande do Sul, el Ministerio Público inició operaciones para desmantelar esquemas fraudulentos que implicaban la prestación de dichos tratamientos, lo que puso de manifiesto cuantiosas pérdidas económicas para el erario público. Por lo tanto, este trabajo analiza la labor del Ministerio Público, pero sobre todo, la importancia de un examen médico exhaustivo para la concesión de estas solicitudes. Con base en esta indispensable labor del médico forense, se pone de manifiesto cómo la asistencia jurídica gratuita, tal como se propone actualmente, carece de la capacidad financiera para cubrir dichos costos a largo plazo.
ABSTRACT
The right to health is constitutional and internationally recognized. Whether it is public or private, every citizen deserves to have this fundamental right guaranteed. Home care treatment has long been granted primarily based on the case law of the Superior Courts. Recently, in the state of Rio Grande do Sul, the Public Prosecutor's Office launched operations to dismantle fraudulent schemes involving the provision of such treatments, highlighting exorbitant financial losses to the public coffers. Therefore, this paper analyzes the work performed by the Public Prosecutor's Office but, besides this, the essential nature of a thorough medical examination for granting these claims. Based on this indispensable work performed by the medical examiner, it becomes clear how free legal aid, as currently proposed, lacks the financial capacity to cover such costs in the long term.
PALAVRAS-CHAVE: Direito à saúde; Home care; Perícia médica; Fraudes; Rio Grande do Sul.
PALABRAS CLAVE: Derecho a la salud; Asistencia domiciliaria; Pericia médica; Fraude; Rio Grande do Sul.
KEY WORDS: Right to health; Home care; Medical expertise; Fraud; Rio Grande do Sul
I. Introdução
É cediço que o direito à saúde é internacionalmente assegurado a todos. Na Constituição Federal brasileira de 1988 a saúde se encontra como um direito social inerente a todos os cidadãos. Se trata, portanto, de uma condição intrínseca a todos seres humanos e que deve ser ofertada com segurança, qualidade e prioridade, justamente para que a qualidade de vida da população seja efetivada. Ousa-se afirmar, inclusive, que a saúde é o cerne de qualquer outro direito fundamental, uma vez que sem ela as pessoas sequer conseguirão buscar e primar pelos outros direitos constitucionalmente previstos.
Considerando, portanto, que a saúde deve ser a prioridade de qualquer estado, seja a ser concedida de forma pública ou privada, tem-se, no Brasil, que para além das legislações que preveem que tal direito deve ser assegurado na sua plenitude, a jurisprudência tem se encarregado de normatizar tais aspectos. Nesse viés, os entendimentos dos Tribunais Superiores têm tomado cena no aspecto legislativo, inclusive para fins de suprir o que a legislação ainda não é capaz de prever ou o faz de forma totalmente impalpável.
No que tange especificamente ao direito à saúde, especificamente ao tratamento domiciliar, verifica-se que tais entendimentos agregam a legislação positivamente. Isso se dá especialmente diante do fato de que as necessidades da população avançam de maneira frenética e deliberada, de modo que se torna impossível a consonância, na mesma celeridade, entre demandas e previsibilidades tão somente legais. E, nesse viés, é o que ocorre com o home care, tratamento que vem sendo significativamente pleiteado pela população, singularmente através de processos judiciais.
Considerando que o tratamento domiciliar é, sucintamente, o fornecimento de todo o aparato, seja pessoal ou instrumental, que o paciente necessita para o tratamento ser realizado, mas em sua residência, é presumido o alto custo que tal modalidade demanda. No mesmo aspecto, tem-se que inúmeras pessoas que buscam o referido tratamento através de demandas judiciais são desprovidas de condições financeiras capazes de suportar sequer o ajuizamento e a tramitação do processo judicial, de modo que, assim sendo, quem suportará o processo e também o tratamento, é o estado.
Tendo em vista, então, a tamanha responsabilidade que recai sobre este, bem como o alto custo que tais tratamentos demandam, questiona-se: a justiça gratuita possui capacidade financeira de sustentar o direito à saúde a todos cidadãos, de forma equânime, a longo prazo? Qual o valor probatório da perícia médica para a concessão de tais pleitos, especialmente em sede liminar?
É exatamente o que o presente estudo visa: em um primeiro tópico evidenciar os conceitos, a legislação e a jurisprudência que norteiam o direito à saúde e o tratamento domiciliar na atualidade brasileira e, posteriormente demonstrar a imprescindibilidade da perícia médica minuciosa a ser realizada previamente à concessão de tais pedidos. Por fim, se traz a conclusão do estudo revelando que a justiça gratuita, acaso não conte com exame técnico específico a ser realizado por profissional médico, pode onerar sobremaneira o estado, de modo que se torne insustentável assegurar o direito fundamental da saúde a todos, inclusive às futuras gerações.
Com base em dados recentemente trazidos por notícias publicadas pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul a partir de operações concretizadas e iniciadas em diversas regiões do estado no ano de 2024 a respeito dos significativos prejuízos causados aos cofres públicos diante de concessões de tratamento home care a pessoas físicas e empresas que prestavam contas fraudulentas ao estado, parte-se da hipótese de que para além dos prejuízos ao erário público quem, sobremaneira se afeta, é toda a população. Em consonância, parte-se da premissa de que a perícia médica detalhada de acordo com a literatura, a ser realizada por profissional idóneo é a prova técnica substancial a se previnir novos rombos nos cofres públicos e a garantir o tratamento em home care àqueles realmente necessitados.
II. O direito à saúde e o home care: conceitos, legislação e jurisprudência
Previamente à redação do direito à saúde no âmbito jurídico brasileiro, indaga-se: o que é saúde? Nem as constituições anteriores, tampouco a atual trazem o conceito exato de saúde. Já o preambulo do documento de constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS, 1948) preconiza que é “um estado de completo bem- estar físico, mental e social e não somente a ausência de afecções e enfermidades”, concepção que, segundo Lauro Ribeiro (2019), se aproxima do sentido original da palavra ”saúde”, do latim salute, que significa salvação, conservação da vida, cura, bem- estar.
Na Constituição Federal brasileira o direito à saúde se encontra no título referente à ordem social, que tem como objetivo o bem- estar e a justiça social. Assim sendo, no seu artigo 6º estabelece como direitos sociais fundamentais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados. Em seguida, o artigo 196 elenca que a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Não bastasse, o artigo 197 também da Carta Magna prevê que são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado. Com base nestes dispositivos o que se percebe é que a saúde deixa de ter um conceito restritivo, passando a englobar, inclusive, a obrigatoriedade de sua oferta por todos os entes federativos e, da mesma forma, possibilitando que pessoas jurídicas privadas desempenhem tal função.
Nesse sentido preconiza Elisangela Santos de Moura (2013: 01):
A proteção constitucional à saúde seguiu a trilha do Direito Internacional, abrangendo a perspectiva promocional, preventiva e curativa da saúde, impondo ao Estado o dever de tornar possível e acessível à população o tratamento que garanta senão a cura da doença, ao menos, uma melhor qualidade de vida. O conceito de saúde evoluiu, hoje não mais é considerada como ausência de doença, mas como o completo bem-estar físico, mental e social do homem. Contudo, o debate sobre o direito à saúde ainda segue no sentido do combate às enfermidades e consequentemente ao acesso aos medicamentos.
Em um estudo mais direcionado Fernando Mussa Abujamra Aith (2015) ao considerar que o direito à saúde demanda de democracia sanitária, também indica que é preciso a participação dos cidadãos na definição dos contornos do direito à saúde e das garantias concretas que serão oferecidas a este direito. Enfatizando, diz que a democracia sanitária, por sua vez, pressupõe que o Estado, para dar conta de seu dever constitucional de proteção do direito à saúde, crie, incentive e desenvolva um ambiente de ampla participação democrática da sociedade na tomada de decisões estatais em saúde.
Da mesma forma Aith (2015: 86) aponta que a complexidade de efetivação do direito à saúde decorre de múltiplos fatores, sendo um dos principais deles o fato de que o próprio conceito de saúde é amplo e sujeito a interpretações diversas:
A imprecisão conceitual sobre o que é a saúde produz efeitos jurídicos importantes. Afinal, quais exatamente são os deveres do Estado no que se refere à proteção do direito à saúde? Considerando-se que os serviços de saúde consomem quantias consideráveis do orçamento público estatal, e também que os conhecimentos científicos sobre saúde individual e coletiva podem ser bastante controversos, a decisão estatal sobre quais serviços e produtos serão oferecidos à população brasileira por meio do SUS é extremamente estratégica, já que define os contornos reais do direito à saúde no país.
Em síntese, para o referido autor os contornos do significado da expressão direito à saúde em nosso país dependem concretamente de decisões estatais estratégicas, tomadas por agentes públicos que ocupam cargos nos três poderes do Estado. Em linhas gerais, ao Poder Legislativo compete produzir leis que orientem e organizem o sistema de saúde brasileiro, público e privado; ao Poder Executivo compete executar as referidas leis e colocar em prática políticas econômicas e sociais que respondam às necessidades de saúde no Brasil de acordo com os princípios constitucionais; e ao Poder Judiciário compete julgar, em última instância, os conflitos que tenham como base a defesa do direito à saúde.
Ocorre que, como em momento seguinte se trará, atualmente, no Brasil, o Poder Judiciário faz além do que julgar, em última instância, lides envolvendo a defesa do direito à saúde. Enquanto a legislação ordinária não supre todas as regulamentações necessárias, a jurisprudência dos Tribunais Superiores, com apreço ou não, vem norteando significativamente os deslindes das demandas judiciais de saúde.
Sob outro viés, Mapelli Jr. (2013: 457) refere que “No preâmbulo da Constituição da OMS, cujos dizeres indicam que estamos diante de um direito fundamental que deve ser implementado da forma mais ampla possível pelos Estados mediante a adoção de medidas sanitárias e sociais adequadas, firmou-se o consagrado conceito internacional de saúde”. Considerando este conceito, o que se percebe é que a saúde está condicionada ao agir positivo do Estado e, no caso brasileiro, seja de forma pública ou privada, desde que seja eficaz e satisfaça as precisões de toda a população. Verifica-se, assim, que a eficiência de políticas públicas é primordial para que a saúde de todos ocorra na prática.
Lauro Ribeiro (2019) afirma, nesse viés, que a ideia de saúde não está restrita à mera cura ou tratamento de doenças, mas que ao seu conceito interagem outros elementos independentes, como a alimentação, o meio ambiente, o saneamento básico, o transporte, o lazer (art. 3º da Lei 8.080/1990- Lei Orgânica da Saúde- LOS) e deve se desenvolver por meio de políticas públicas voltadas ao cuidado primário da população, conforme preconiza a Declaração de Alma-Ata (1978), formulada por ocasião da Conferência Internacional sobre Cuidados Primários de Saúde, reunida naquela localidade, na República do Cazaquistão (ex-República Socialista Soviética).
O que se percebe, portanto, é que o conceito de saúde e, propriamente, o direito à saúde sob uma perspectiva de democracia sanitária envolve uma série de direitos fundamentais e sociais do ser humano que, em conjunto, significam nada mais, nada menos, que o agir positivo e pleno do estado, nas suas diversas formas, mas em atenção, sobretudo, à participação cidadã. Em que pese ser cediço tais fatores, o que se verifica é que, com base, por exemplo, na extrema burocratização na prestação destes serviços que ocorre ainda em vias administrativas e no alto custo dos medicamentos e tratamentos demandados, consequentemente se dá o inchaço do Poder Judiciário, que dentre outras naturezas processuais, é assolado com a massificação de ações que visam a concessão de direitos sociais básicos, tais como a saúde.
Corrobora tal fator o estudo realizado por Aith (2015), quando naquele ano, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) haviam 392 mil ações judiciais de saúde no país3. Em recente publicação realizada pelo mesmo conselho, datada de 12 de maio do presente ano, tem-se que estão pendentes de julgamento no Brasil mais de 860 mil processos sobre saúde, além de que, só em 2023 foram ajuizadas 640 mil novas ações4. Isso significa que cerca de dez anos após os primeiros dados, os números de acoes envolvendo saúde no país superam o índice de duplicação.
E é também diante disso que o conceito de direito à saúde retroage a ser sinônimo de, apenas, condição de sobrevivência em muitos casos. Conforme preconiza Ribeiro (2019) a concepção de saúde prevista na OMS e também na Constituição Federal brasileira de 1988 traz o reconhecimento da essencialidade do equilíbrio interno e também o equilíbrio do ser humano com o ambiente (bem- estar físico, mental e social) e guarda relação com o fato de que o indivíduo é um ser social, um ser gregário por excelência.
Ainda,
(...) como já definia Aristóteles, vive na ”pólis” e como tal deve haver uma preocupação com sua “saúde social”, que se traduz na alegria de viver, em seu bem-estar físico, mental, econômico, relacionado ao meio em que vive, à sua família. É dizer: este “mínimo existencial” não pode ser confundido ou reduzido a um “mínimo vital”, responsável apenas pela sobrevivência do indivíduo; ao contrário, deve ser capaz de garantir uma vida saudável, uma vida que valha a pena ser vivida. (Ribeiro, 2019: 763)
Consequência disso, é que o estado desempenha a função de protagonista na concretização dos direitos humanos, aqui referente à saúde. Independentemente de como se dará a atuação positiva do ente estatal, o que se nota é que tanto as políticas públicas de atenção básica à saúde, quanto à possibilidade de privatização de tais serviços deve se dar de forma proba e em atenção à primazia do princípio da supremacia do interesse público.
Nesse sentido, utilizando-se de Ingo Sarlet (2002), afirma ele que é o Legislador federal, estadual e municipal, a depender da competência legislativa prevista na própria Constituição, quem irá concretizar o direito à saúde, devendo o Poder Judiciário, quando acionado, interpretar as normas da Constituição e as normas infraconstitucionais que a concretizarem. Com a indefinição do que seria o objeto do direito à saúde, o legislador foi incumbido do dever de elaborar normas em consonância com a Constituição Federal de 1988.
Complementa Moura (2013), neste viés, que a aplicação da norma constitucional depende intrinsicamente de procedimentos a serem executados pelo Estado, bem como criação de estruturas organizacionais para o cumprimento do escopo constitucional de promover, preservar e recuperar a saúde e a própria vida humana. Há, portanto, um claro dever do Estado de criar e fomentar a criação de órgãos aptos a atuarem na tutela dos direitos e procedimentos adequados à proteção e promoção dos direitos.
Tendo por referência, portanto, a imprescindível atuação do Estado no que tange à promoção de práticas que efetivem o acesso à saúde, da mesma forma se verifica com a demanda para legalizar pleitos que surgem na medida das novas necessidades da sociedade. Pontua Robert Alexy (2019), nessa acepção, que “as normas de organização e procedimento devem ser criadas de forma que o resultado seja, com suficiente probabilidade e em suficiente medida, conforme os direitos fundamentais.” Do mesmo modo, orienta Ingo Sarlet (2002): “Se os direitos fundamentais são, sempre e de certa forma, dependentes da organização e do procedimento, sobre estes também exercem uma influência que, dentre outros aspectos, se manifesta na medida em que os direitos fundamentais podem ser considerados como parâmetro para a formatação das estruturas organizatórias e dos procedimentos, servindo, para além disso, como diretrizes para a aplicação e interpretação das normas procedimentais.”
Ou seja, verifica-se que o tratamento domiciliar no Brasil surgiu a partir de construções jurisprudenciais e que foram necessárias a partir das novas carências da população. Tal direito se põe à sociedade como uma nova prática de efetivação do direito à saúde, mas que deve ser amplamente norteado por prova técnica, a fim de que o estado consiga suprir as necessidades reais que batem à sua porta.
Segundo o Senado Federal brasileiro, o programa de atenção domiciliar é o conjunto de atividades desenvolvidas na casa do paciente em função da complexidade assistencial e avaliação socioambiental realizado por equipe multiprofissional de saúde. São ações de saúde, tratamento de doenças e reabilitação desenvolvidas fora do ambiente hospitalar e adequadas às necessidades do beneficiário. O programa de atenção domiciliar pode ocorrer em quatro modalidades: cuidador, assistência de enfermagem sem internação domiciliar, oxigenoterapia e internação domiciliar (home care).
Ainda, de acordo com as normas administrativas do Senado Federal, a Instrução Normativa do Conselho de Supervisão do SIS (Sistema Integrado de Saúde) n.º 16 de 20215, no seu artigo 1º, parágrafo 2º prevê que o Programa de Atenção Domiciliar poderá englobar assistência multidisciplinar, a saber: fisioterapia, nutrição, enfermagem, fonoaudiologia, terapia ocupacional, psicologia e outras assistências profissionais de saúde, cujas necessidades serão avaliadas e definidas pela perícia do SIS. Em complemento, o artigo 12 da mesma instrução prevê que considera-se elegível para internação domiciliar (home care) o portador de enfermidade clínica ativa, hemodinamicamente estável, de alta ou média complexidade, que demande atenção médica ou multidisciplinar continuada, e cuja permanência em internação hospitalar não seja necessária ou recomendada.
O parágrafo único do mesmo artigo complementa que a internação domiciliar (home care) dependerá de prévia autorização do SIS, devendo ser satisfeitos os critérios de elegibilidade descritos no anexo I. Cabe à perícia decidir sobre o pedido, definindo os procedimentos, materiais, serviços, equipamentos e medicamentos autorizados de forma a melhor atender as necessidades do beneficiário.
Partindo de tal conceito e sendo de conhecimento que o acesso ao direito à saúde no Brasil e, neste caso, mais especificamente no Rio Grande do Sul, ainda caminha a passos ínfimos de se atingir a plenitude e a paridade, tem-se que as pessoas encontram no Poder Judiciário a possibilidade de ver tais direitos efetivados. Diante disso, o número de ações judiciais que visam a concessão de tratamentos médicos e medicamentosos é infindável. Nota-se assim, que para além de os entendimentos dos Tribunais Superiores complementarem e suprirem a legislação, o judiciário é ídolo da população que demanda, na maioria dos casos, de maneira urgente, de tratamentos de saúde.
De forma diversa não ocorre com a precisão de tratamentos domiciliares, de maneira que a jurisprudência vem prevendo, de forma cada vez mais minuciosa, as diretrizes para nortear tais ações. Em que pese ser de conhecimento a existência de instruções normativas regulamentando a matéria, verifica-se que os entendimentos dos tribunais superiores ainda servem de significativo respaldo para fundamentar tais pleitos. Nesse sentido, destaca-se que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), por unanimidade, decidiu que é vedado ao plano de saúde reduzir o atendimento hospitalar em domicílio, conhecido como home care, sem indicação médica. Para o colegiado, a repentina e significativa redução da assistência à saúde durante tratamento de doença grave e contrariando a indicação médica viola os princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da dignidade da pessoa humana:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚM. 282/STF. REDUÇÃO DO TEMPO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE EM REGIME DE HOME CARE CONTRARIANDO INDICAÇÃO DO MÉDICO ASSISTENTE. BENEFICIÁRIA EM TRATAMENTO DE DOENÇA GRAVE. INTERNAÇÃO DOMICILIAR COMO ALTERNATIVA À INTERNAÇÃO HOSPITALAR. CONDUTA DA OPERADORA QUE CARACTERIZA NEGATIVA INDEVIDA DE COBERTURA. DANO MORAL CONFIGURADO. 1. Ação de obrigação de fazer c/c compensação por dano moral ajuizada em 15/04/2016, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 08/06/2021 e concluso ao gabinete em 26/09/2023. 2. O propósito recursal é decidir sobre a nulidade do acórdão recorrido, por inobservância da regra do art. 942 do CPC/2015, e sobre a possibilidade de a operadora reduzir o regime de home care em que se encontra a beneficiária, de 24h para 12h por dia. 3. A ausência de decisão acerca dos dispositivos legais indicados como violados impede o conhecimento do recurso especial (súmula 282/STF). 4. É abusiva a cláusula contratual que veda a internação domiciliar (home care) como alternativa à internação hospitalar, por não configurar procedimento, evento ou medicamento diverso daqueles já previstos pela agência. Precedentes. 5. Ainda que não tenha havido a suspensão total do atendimento pelo regime de home care, a arbitrária, abrupta e significativa redução da assistência à saúde até então recebida pela beneficiária, no curso do tratamento de doença grave e contrariando a indicação do médico assistente, é conduta que também deve ser considerada manifestamente abusiva, por violação dos princípios da boa-fé objetiva, da função social do contrato e da dignidade da pessoa humana. 6. “A prestação deficiente do serviço de home care ou a sua interrupção sem prévia aprovação ou recomendação médica, ou, ainda, sem a disponibilização da reinternação em hospital, gera dano moral, visto que submete o usuário em condições precárias de saúde à situação de grande aflição psicológica e tormento interior, que ultrapassa o mero dissabor, sendo inidônea a alegação de mera liberalidade em seu fornecimento” (REsp 1.537.301/RJ, Terceira Turma, julgado em 18/8/2015, DJe de 23/10/2015). 7. Recurso especial conhecido em parte e, nessa extensão, provido. Brasília, 17 de outubro de 2023 (data do julgamento).
No mesmo teor o STJ decidiu, através de decisão proferida pela Terceira Turma que os planos de saúde devem custear os insumos indispensáveis para o tratamento na modalidade home care, conforme a prescrição médica, sendo o valor do atendimento domiciliar limitado ao custo diário em hospital:
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PLANO DE SAÚDE. HOME CARE. INTERNAÇÃO DOMICILIAR SUBSTITUTIVA DA INTERNAÇÃO HOSPITALAR. INSUMOS NECESSÁRIOS AO TRATAMENTO DE SAÚDE. COBERTURA OBRIGATÓRIA. CUSTO DO ATENDIMENTO DOMICILIAR LIMITADO AO CUSTO DIÁRIO EM HOSPITAL. 1. Ação de obrigação de fazer ajuizada em 23/01/2020, da qual foi extraído o presente recurso especial, interposto em 25/04/2022 e concluso ao gabinete em 10/08/2022. 2. O propósito recursal é decidir sobre a obrigação de a operadora do plano de saúde custear os insumos necessários ao tratamento médico da usuária, na modalidade de home care (internação domiciliar). 3. Nos termos da jurisprudência desta Corte, é abusiva a cláusula contratual que veda a internação domiciliar (home care) como alternativa à internação hospitalar. Precedentes. 4. A cobertura de internação domiciliar, em substituição à internação hospitalar, deve abranger os insumos necessários para garantir a efetiva assistência médica ao beneficiário; ou seja, aqueles insumos a que ele faria jus acaso estivesse internado no hospital, sob pena de desvirtuamento da finalidade do atendimento em domicílio, de comprometimento de seus benefícios, e da sua subutilização enquanto tratamento de saúde substitutivo à permanência em hospital. 5. O atendimento domiciliar deficiente levará, ao fim e ao cabo, a novas internações hospitalares, as quais obrigarão a operadora, inevitavelmente, ao custeio integral de todos os procedimentos e eventos delas decorrentes. 6. Hipótese em que deve a recorrida custear os insumos indispensáveis ao tratamento de saúde da recorrente – idosa, acometida de tetraplegia, apresentando grave quadro clínico, com dependência de tratamento domiciliar especializado – na modalidade de home care, conforme a prescrição feita pelo médico assistente, limitado o custo do atendimento domiciliar por dia ao custo diário em hospital. 7. Recurso especial conhecido e provido. Brasília, 14 de fevereiro de 2023 (data do julgamento).
Portanto, o que se verifica é que os entendimentos das cortes superiores brasileiras tem se aperfeiçoado com o passar dos anos, de modo a proporcionar balizas significativas aos processos judiciais que visam o tratamento domiciliar. O que se conclui a partir de tais ementas, é que o estado, seja através de políticas públicas, seja através de planos privados, é compelido à prestação de tais serviços que visam concretizar o direito social à saúde dos cidadãos.
Por outro lado, quando se trata de fornecimento de tais tratamentos por planos de saúde públicos, tal como ocorre pelo Instituto de Previdência do Estado do Rio Grande do Sul (IPERGS), no estado do Rio Grande do Sul, alguns alertas surgem. Especificamente o IPE Saúde é o atual responsável pela assistência à saúde dos servidores públicos e seus dependentes. Nessa perspectiva, é de se ponderar que, senão unanimemente, a maioria dos processos ajuizados por pessoas beneficiárias de tais planos, tramitam sob o crivo do beneficio da justiça gratuita. Tal previsão é assegurada constitucionalmente, no artigo 5º, incisos XXXV e LXXIV que assim preveem:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(…) XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
(…) LXXIV – o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
No Código de Processo Civil se encontra no artigo 99, caput e parágrafo 3º: O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso. § 3º Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural. Em recente voto proferido pelo Ministro Edson Fachin diante do julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) 80 do Distrito Federal, elencou que a proteção constitucional ao acesso à justiça e à gratuidade do serviços judiciários encontra guarida na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, componente do “direito a ter direitos”, ou seja, da possibilidade de efetivo acesso às liberdades e demais direitos fundamentais garantidos pela Constituição.
Acrescentou ainda, que é preciso reconhecer, ainda, a conexão relevante entre a gratuidade da Justiça e o princípio da igualdade. A desigualdade decorrente da inexistência de acesso isonômico à educação, ao mercado de trabalho, à saúde, dentre outros direitos de cunho econômico, social e cultural, impõe seja reforçado o âmbito de proteção de um direito que viabiliza a busca por outros direitos. Amparam a gratuidade da Justiça como direito fundamental outros princípios e fundamentos da Constituição de 1988, dentre os quais aqueles que visam a conformar e concretizar os fundamentos da República relacionados à cidadania (art. 1º, II, da CRFB), da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CRFB), bem como os objetivos fundamentais de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I , da CRFB), erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais (art. 3º, III, da CRFB).
Tal fundamentação foi utilizada para nortear o entendimento do Senhor Ministro no sentido de que a declaração de pobreza basta para a gratuidade na Justiça do Trabalho, considerando especificamente o enredo da referida ADC. O julgamento da ação restou, da mesma forma, recentemente suspenso, diante de pedido de vista de outro ministro da Corte. Em que pese ainda não finalizado, tem-se o aspecto vinculante da decisão que sobrevirá, de modo a ser observada por todos juízes e tribunais brasileiros.
A partir de tais menções, indispensáveis para se falar da gratuidade judiciária, conclui-se que: em que pese ainda não se ter a decisão da referida ação que provavelmente será emblemática para os próximos pedidos do benefício, verifica-se que o voto de Fachin contraria o próprio texto constitucional, uma vez que aquele prevê que a assistência jurídica integral e gratuita será prestada pelo Estado àqueles que comprovarem a insuficiência de recursos. Apesar de a legislação ordinária, tal como previsto no Código de Processo Civil prever que tal hipossuficiência é presumida, tem-se que a supremacia da Constituição deve ser observada, uma vez que a generalidade de presunção de incapacidade económica pode elevar significativamente os números, em um primeiro momento trazidos, também das ações que dizem respeito à saúde.
Hodiernamente, no que tange à fixação dos honorários periciais sob o crivo da justiça gratuita no Tribunal de Justiça gaúcho, tais valores são regulamentados pelo Ato 038-2025-P, de 08 de maio de 2025, que passou prever o valor de R$ 823,91 para perícias médicas. Outrossim, em casos extremamente excepcionais, senão raros, a partir do preenchimento de inúmeros critérios, com base na Resolução n. 1359/2021- COMAG, é possível a majoração destes honorários até cinco vezes o valor da tabela. Nestes casos, o perito apenas perceberá o valor após o trânsito em julgado da ação.
Ou seja, tem-se que em que pese o Tribunal de Justiça gaúcho dispor de regulamentação acerca da majoração dos honorários periciais que serão arcados pelo Estado, portanto, em casos de partes que são beneficiárias da justiça gratuita, tal deferimento é extremamente burocrático de modo a dificultar que os profissionais persistam na busca pela elevação dos honorários. Isso se dá a exemplo de que o recebimento se dará somente após o transito em julgado da ação, que poderá demandar significativos anos.
Validando a hipótese de inúmeros processos judiciais sendo ajuizados sob o crivo da justiça gratuita que visam o Home Care, traz-se que recentemente o Ministério Público estadual do Rio Grande do Sul realizou operações que apontaram fraudes e desvios de recursos públicos que seriam destinados aos tratamentos de home care.
Segundo noticiado no site institucional, o Ministério Público do Rio Grande do Sul (MPRS), por meio do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO), deflagrou no dia 9 de abril de 2025, a “Operação Home Cash” em Santo Ângelo e Giruá, nas Missões, e em Passo Fundo, no Norte do Estado. O objetivo foi o de combater fraudes e desvios de recursos públicos obtidos via judicial para o chamado sistema de home care, que é um tratamento especial a partir de uma estrutura médica montada na residência de pacientes.
Consta ainda, que a fraude ocorria da seguinte forma: pais e responsáveis de pacientes, geralmente crianças ou adolescentes que necessitam de home care, ingressam com pedidos judiciais e indicam empresas especializadas neste tipo de atendimento. Como estes pedidos são deferidos liminarmente e, em razão da impossibilidade de cumprimento imediato da decisão, o Estado precisa licitar a prestação de serviço. Para garantir que os pacientes não fiquem sem tratamento, a Justiça determina o repasse de valores, na verdade, um bloqueio das contas do Estado, destinando os recursos para custear estas contratações diretas das empresas especializadas.
No aguardo da licitação e com liminar deferida, as empresas indicadas pelos investigados passam a atuar temporariamente, mas, na verdade, simulam ou prestam serviço inferior ao que havia sido solicitado judicialmente. Depois disso, com apoio de advogados, prestam contas falsas à Justiça para que os recursos públicos recebidos sejam desviados para finalidades distintas a dos tratamentos domiciliares. No entanto, quando o Estado finaliza a licitação da prestação do serviço solicitado ao Poder Judiciário e uma empresa idônea vence o certame, os investigados fazem de tudo para perpetuar o esquema criminoso.
Atualmente, com base em informações também oriundas do site institucional do Ministério Público verifica-se que a Operação Home Cash encontra-se, segundo noticiado em 09 de abril do presente ano, em fase investigativa. Já a partir da Operação Gollum deflagrada em Passo Fundo/RS, em notícia publicada em 13 de maio deste ano, 23 (vinte e três) pessoas já foram denunciadas.
Assim, considerando o exposto acerca da legislação, jurisprudência e recentes ações realizadas pelo Parquet do Rio Grande do Sul, logra-se em concretizar a hipótese apresentada inicialmente: tendo em vista que se estima em mais de 35 (trinta e cinco) milhões o valor bloqueado judicialmente dos cofres públicos para custear as contratações diretas de home care é inquestionável o prejuízo suportado por toda a população gaúcha, inclusive daquelas pessoas que, porventura necessitem dos referidos tratamentos.
Dessa forma, também é patente que a justiça gratuita, por mais que um instituto facilitador do acesso à justiça e, consequentemente de todos os direitos fundamentais e sociais constitucionalmente assegurados, dificilmente terá condições de suportar os custos judiciais de tais demandas, quiçá às futuras gerações. Outrossim, verifica-se que lamentavelmente a população que mais necessita, usa, sem pudor, de tal instituto para fraudar a aplicabilidade de direitos fundamentais, visando, demasiadamente, o enriquecimento ilícito às custas dos cofres públicos.
Por conseguinte, em complementação a tais considerações, tem-se que a perícia médica a ser realizada em tais processos judiciais pode ser a ferramenta primordial para que os tratamentos domiciliares sejam fornecidos apenas aos realmente necessitados.
III. A perícia médica como imprescindível ferramenta para a concessão de tratamentos domiciliares
Ao longo de aproximados dois anos de atuação enquanto perito judicial, inclusive realizando perícias em processos que demandam de tratamento home care, o que se pode constatar é que tal prova é fundamental à análise de tais pedidos pelos operadores do direito. Enquanto juízes, promotores de justiça, defensores públicos e auxiliares da justiça se dedicam à formalização da busca pela concretização do direito à saúde através da legislação e jurisprudência, o perito médico judicial desempenha o trabalho técnico de averiguar se o caso clínico de determinado paciente se amolda ao que é pleiteado, seja quanto ao pedido de disponibilidade de profissionais aptos ou de instrumentos e/ou medicamentos nos parâmetros de home care.
A partir do que amplamente tem se verificado em perícias médicas judiciais já realizadas em processos que tramitam, neste caso, em busca do tratamento domiciliar, perante a justiça estadual do Rio Grande do Sul, é possível se estabelecer, no mínimo, até então, dois perfis de procura: primeiro, famílias com algum ente portador de doenças graves e, até mesmo, raras ou sequelas destas necessitando unicamente de cuidadores; sob outra perspectiva, pessoas com doenças leves e comumente encontradas na população em geral ajuizando a busca pelo home care como forma de solucionar todos os percalços da vida, dispondo toda expectativa sobre o resultado da perícia, inclusivo com o intuito de, no futuro, pleitear benefício previdenciário assistencial.
Em que pese, portanto, ser de conhecimento que a função de cuidador se encontra no conceito de previsibilidade do tratamento domiciliar, cria-se aqui um significativo alerta: a extrema pertinência de reavaliação periódica, através de perícias médicas, para fins de se acompanhar a evolução do quadro clínico do paciente. Não é salubre aos cofres públicos, tampouco à população em geral crer em pleitos de home care eternos, uma vez que a situação que inicialmente o ensejou pode se alterar com o decurso do tempo. No mais, tal periodicidade teria o condão de averiguar o tanto que os familiares se aperfeiçoaram nos cuidados para com seu ente, justamente a ponto de eles mesmos conseguirem desempenhar tal papel, de forma, inclusive, a desonerar o Estado.
Nesse sentido, é evidente que a prova médica pericial é imprescindível para o deslinde de tais casos processuais. Lucas Pedroso Fernandes Ferreira Leal e Antonio Milagres (2012: 82-90) assim destacam em trabalho publicado acerca da importância do laudo pericial médico na formação do entendimento do juízo:
A importância da perícia médica reside no sentido de estender o olhar dos magistrados, permitindo a justiça social, para muito mais além do que um desfecho desfavorável. A prestação de serviços de saúde se dá de forma complexa, sem compromisso de resultado, envolvendo, muitas vezes, vários médicos, de especialidades distintas, e outros profissionais da área. Há que se considerar toda uma constelação de fatores, numa complexa interação, que envolve o restabelecimento da saúde: fatores endógenos, psicológicos, próprios da doença, dentre os mais variados, podem contribuir para um evento indesejado, independentemente das medidas usuais e dos meios empregados, de acordo com a particularidade de cada indivíduo. […] Ademais, a imperfeição da ciência é uma realidade com a qual se convive. O julgamento justo - consistente em provas, incluindo, especialmente, a de natureza técnica, além de argumentos concisos - finda quando resta evidenciado ter havido má prática médica, ou não, do modo devido.
E, apesar de ser sabido que a prova técnica pericial não vincula a do juízo, da mesma forma se sabe que são raras as decisões judiciais que desconsideram o constatado em laudos periciais. Assim também acrescentam os autores Leal e Milagres:
Sabe-se que a opinião do perito não vincula a do juiz. A autoridade judicial não fica adstrita ao laudo médico, podendo discordar, no todo ou em parte, das suas conclusões, e determinar a realização de nova perícia, se assim julgar conveniente. Pode haver casos, embora mais raros, em que o juiz, analisando a perícia junto às demais provas constantes do processo, decida em sentido oposto ao laudo pericial. Assim prevê a legislação. Mas como se pode constatar, apesar de a convicção do magistrado não estar total nem absolutamente vinculada ao resultado da perícia médica, sua influência na formação do convencimento do juiz é substancial. (2012: 82-90).
Por fim, digno ponderar que considerando o teor do noticiado pelo Ministério Público gaúcho a respeito de fraudes constatadas no sistema de concessão de tratamentos de home care, verifica-se que tal prejuízo se deu, neste caso, em decisões que eram proferidas em sede liminar. Há grande probabilidade- uma vez que impossível o acesso aos autos de tais processos- que previamente a tais concessões não se realizava a perícia médica, ou se assim se fazia, era realizada por algum integrante do grupo criminoso.
Com isso, tem-se o reforço da imprescindibilidade de tal prova técnica, inclusive nos primórdios do ajuizamento de tais ações. Talvez com isso se evite futuros rombos aos cofres públicos, como no caso em comento, e se conceda o direito à saúde com tratamentos excessivamente onerosos aos pacientes que realmente demandem, considerando, sobretudo, os aspectos clínicos do caso levado ao Poder Judiciário.
IV. Considerações finais
Concluindo o presente estudo, verifica-se que em que pese a saúde, até hoje, não contar com um conceito concretamente definido, tem-se que o direito à saúde deve ser amplamente ofertado e corresponder muito além do que o simples direito à sobrevivência. O direito à saúde é previsto internacionalmente e tem como escopo a promoção, acima de tudo, de uma vida digna, de consonância entre corpo e mente, ser humano e meio ambiente.
Para tanto, no Brasil a jurisprudência se encarrega de trazer nortes ao que a legislação ainda não supre, inclusive servindo de parâmetro de decisões judiciais importantes e de grande impacto social. É o que ocorre com relação ao tratamento domiciliar, que atualmente é amplamente e na sua integralidade assegurado pelos entendimentos dos Tribunais Superiores. O STJ é enfático ao estabelecer a cobertura do home care pelos planos de saúde, vedando, inclusive, que decisões judiciais sejam abruptas em reduzir o sugerido pelos médicos assistentes.
A partir do estudo, vê-se dois cenários: por um lado, a concretização de direitos sociais através da jurisprudência que é amplamente validativa e por outro, o lamentável agir do ser humano que utiliza do aparato estatal para fraudá-lo. O constatado em operações recentemente realizadas pelo Ministério Público gaúcho evidencia que o homem não possui limites e que há uma verdadeira inversão de valores, uma vez que o objetivo de lucro fácil através do enriquecimento ilícito se sobrepõe, inclusive, aos direitos dos filhos crianças e adolescentes.
Finalmente, o que se percebe é que as perícias médico judiciais possuem valor probatório de extrema relevância para a concessão ou não de tratamentos médicos de alto custo através de processos judiciais. A função do perito médico, nestes casos, vai muito além do que nortear a convicção do juízo. É o real meio de se previnir tais tipos de ações criminosas e de se garantir o direito social à saúde de maneira proporcional a estas e, quiçá, às futuras gerações.
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1 Advogada. Mestra em Desenvolvimento com ênfase em Políticas Públicas. Especialista em Direito Público. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa em Gestão e Políticas Públicas, Desenvolvimento, Comunicação e Cidadania- GPDeC. lcbonfada@gmail.com. https://orcid.org/0000-0002-1195-6177.
2 Médico pela Universidade Federal de Santa Maria/RS (UFSM). Perito Judicial. Pós graduado em Perícia Médica. mauriceuebel92@gmail.com. https://orcid.org/0009-0008-4360-6738
3 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Relatórios de cumprimento da Resolução CNJ n. 107. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/images/programas/forumdasaude/demandasnostribunais.forumSaude.pdf>. Acesso em: 17 mar. 2015.
4 Conselho Nacional de Justiça: https://www.cnj.jus.br/link-cnj-celebra-15-anos-do-fonajus-e-debate-sobre-judicializacao-da-saude/. Acesso em 07 de julho 2025.
5 https://adm.senado.leg.br/normas/ui/pub/normaConsultada?0&idNorma=14378884. Acesso em 07 de julho de 2025.