Feminismos e identidades para efetivação de direitos humanos no Mercosul
Feminisms and Identities for the Realization of Human Rights in Mercosur.
Sandra Regina Martini1; Stéphani Fleck da Rosa2
DOI: https://doi.org/10.37767/2591-3476(2025)03
Fecha de envío: 13.04.2025
Fecha de aceptación: 30.05.2025
RESUMO:
O artigo analisa o direito à identidade como elemento central para a promoção da dignidade humana e da justiça social no contexto do Mercosul. O problema de pesquisa parte das dificuldades em garantir os direitos das mulheres em sociedades marcadas por desigualdades estruturais e conflitos multiculturais. O objetivo geral é compreender como o reconhecimento das identidades culturais e de gênero pode contribuir para a efetivação dos direitos humanos. Entre os objetivos específicos, destacam-se: refletir sobre a identidade como construção dinâmica; integrar justiça distributiva e reconhecimento; e avaliar políticas públicas nos países do bloco. A hipótese propõe que a articulação entre identidade, redistribuição econômica e reconhecimento cultural favorece a inclusão social e o combate à violência de gênero. Utiliza-se metodologia qualitativa, com base em análise teórica e comparativa de legislações nacionais. Os resultados apontam avanços normativos — como leis de feminicídio e aborto — mas também evidenciam a fragilidade das políticas públicas diante de crises como a pandemia. Conclui-se que políticas intersetoriais e o princípio da fraternidade são essenciais para enfrentar desigualdades e transformar as estruturas sociais, garantindo uma participação igualitária e efetiva das mulheres na vida pública.
RESUMEN:
Este artículo analiza el derecho a la identidad como elemento central para promover la dignidad humana y la justicia social en el contexto del Mercosur. El problema de investigación surge de las dificultades para garantizar los derechos de las mujeres en sociedades marcadas por desigualdades estructurales y conflictos multiculturales. El objetivo general es comprender cómo el reconocimiento de las identidades culturales y de género puede contribuir a la realización de los derechos humanos. Los objetivos específicos incluyen: reflexionar sobre la identidad como un constructo dinámico; integrar la justicia distributiva y el reconocimiento; y evaluar las políticas públicas en los países del bloque. La hipótesis propone que la articulación entre identidad, redistribución económica y reconocimiento cultural fomenta la inclusión social y la lucha contra la violencia de género. Se utiliza una metodología cualitativa, basada en un análisis teórico y comparativo de la legislación nacional. Los resultados apuntan a avances normativos —como leyes sobre femicidio y aborto— pero también resaltan la fragilidad de las políticas públicas ante crisis como la pandemia. La conclusión es que las políticas intersectoriales y el principio de fraternidad son esenciales para abordar las desigualdades y transformar las estructuras sociales, garantizando la participación igualitaria y efectiva de las mujeres en la vida pública.
ABSTRACT
The article analyzes the right to identity as a central element for the promotion of human dignity and social justice within the context of Mercosur. The research problem stems from the challenges in ensuring women's rights in societies marked by structural inequalities and multicultural conflicts. The general objective is to understand how the recognition of cultural and gender identities can contribute to the realization of human rights. Among the specific objectives are: to reflect on identity as a dynamic construction; to integrate distributive justice and recognition; and to evaluate public policies in the countries of the bloc.The hypothesis proposes that the articulation between identity, economic redistribution, and cultural recognition promotes social inclusion and the fight against gender-based violence. A qualitative methodology is used, based on theoretical and comparative analysis of national legislation. The results indicate normative advances—such as laws on femicide and abortion—but also highlight the fragility of public policies in times of crisis, such as the pandemic. It is concluded that intersectional policies and the principle of fraternity are essential to address inequalities and transform social structures, ensuring equal and effective participation of women in public life.
PALAVRAS-CHAVE: Identidade; Direito Fraterno; Feminismos; Multiculturalismo; Mercosul
PALABRAS CLAVE: Identidad; Derecho Fraternal; Feminismos; Multiculturalismo; Mercosur
KEY WORDS: Identity; Fraternal Law; Feminisms; Multiculturalism; Mercosur.
I. Introdução
O direito à identidade tem se mostrado cada vez mais central nas discussões sobre justiça social e democracia em sociedades contemporâneas. Longe de ser uma característica fixa ou natural, a identidade é compreendida como um processo dinâmico, construído historicamente a partir de interações sociais, culturais e políticas. Em contextos marcados pelo multiculturalismo, pelas migrações e pelas desigualdades estruturais, esse direito assume uma dimensão estratégica na promoção da dignidade humana e na efetivação dos direitos fundamentais. A compreensão de quem somos, individual e coletivamente, impacta diretamente na forma como acessamos e reivindicamos direitos.
O problema de pesquisa que se impõe é: de que forma o direito à identidade, especialmente a identidade de gênero, pode contribuir para a efetivação dos direitos humanos das mulheres no espaço do Mercosul, frente aos desafios da desigualdade estrutural e da violência de gênero? Para enfrentar essa questão, o objetivo geral do estudo é analisar como o reconhecimento das identidades culturais e de gênero pode atuar como vetor de transformação social e jurídica na proteção de direitos. Como objetivos específicos, busca-se: (i) discutir o papel da identidade como fundamento dos direitos humanos; (ii) integrar as dimensões de redistribuição econômica e reconhecimento cultural nas políticas públicas; e (iii) examinar criticamente a legislação voltada aos direitos das mulheres nos países do Mercosul, especialmente em contextos de crise como a pandemia.
A hipótese central é a de que políticas públicas intersetoriais que articulem reconhecimento identitário, justiça distributiva e um compromisso ético com a equidade têm maior potencial de efetivar os direitos humanos das mulheres, reduzindo as múltiplas formas de violência que as atingem. Sustenta-se que o direito à identidade, quando compreendido em sua dimensão relacional e plural, permite superar modelos jurídicos baseados na neutralidade formal e contribui para uma democracia mais inclusiva e sensível às diferenças.
Para testar essa hipótese, adota-se uma metodologia qualitativa, com abordagem interdisciplinar, baseada em revisão teórica, análise documental e estudo comparado das legislações sobre direitos das mulheres nos países do Mercosul. A análise envolve o exame de normas jurídicas sobre feminicídio, aborto e violência doméstica, bem como das políticas públicas emergenciais adotadas durante a pandemia de COVID-19. Também se considera o papel dos movimentos feministas e das instituições na formulação e fiscalização dessas medidas, destacando avanços e limitações.
Dessa forma, este estudo pretende contribuir com o debate sobre a centralidade da identidade na construção de uma cultura jurídica comprometida com a justiça social. O fortalecimento dos direitos das mulheres exige mais do que reconhecimento formal: demanda transformação das estruturas normativas, simbólicas e institucionais que sustentam a desigualdade. Nesse horizonte, o princípio da fraternidade e a valorização das identidades múltiplas se apresentam como caminhos promissores para a construção de um espaço regional verdadeiramente democrático, no qual a diversidade não seja apenas tolerada, mas acolhida como base legítima da dignidade humana.
II. Direito à Identidade
Experimentar novos modelos sociais é possível diante do discurso jurídico da dignidade humana dentro da sua concepção de mundo que reorganiza as estruturas sociais e políticas perante os alicerces de uma tradição. Pensa-se de modo constante na identidade individual e coletiva contemporaneamente. Entende-se, pois, por compreensão da identidade do sujeito a capacidade de apreender a verdade do outro e estabelecer formas significativas de interação em prol de uma realização construtiva dos direitos humanos e fundamentais. Assim, a identidade não significa apenas uma habilidade superficial no manejo da convivência.
Tem-se a identidade coletiva que se alicerça nas expressões da cultura com marcas da comunidade e de padrões perceptíveis de ordem social valorativa. Reforça o teor da dignidade acompanhado ao modelo constitucional contemporâneo e a experiência das instituições políticas, traçando o respeito à diversidade e à diferença num contexto multicultural, contribuindo para a mediação de conflitos:
A solução de conflitos de base identitária (e aqueles entre culturas o são) deve desfazer nós intrincados. É notório quais problemas o multiculturalismo que a crescente fase migratória induz tem criado aos sistemas jurídico-políticos; e se conhece bem o quanto “abstratas” são as categorias da cidadania quando é necessário tomar decisões concretas e transformá-las em diretiva de ações ou, pior ainda, em uma medida de equilíbrio (Resta, 2014:70).
Vê-se o multiculturalismo não apenas como problema, mas como condição de vida e solução inevitável. Há razoabilidade na proposta de um pacto de cidadania entre a cultura hospitaleira e a cultura hospedada, em contrato regular e não hipocritamente imposto (Resta, 2014: 70). O multiculturalismo é, portanto, a necessidade de reconhecimento e respeito às diferenças culturais, de modo a viabilizar uma convivência pacífica e fraterna.
As lutas por reconhecimento seriam motivadas por questões identitárias e de diversidade cultural, o que exigiria a criação de uma política de reconhecimento “hospitaleira com as diferenças” (Taylor, 2009:136). Taylor relaciona a concepção de reconhecimento com a identidade, na qual identidade é verificada pelo reconhecimento do outro pelos outros (Taylor, 2009: 86). Nesse sentido, o autor busca identificar como a sociedade liberal democrática deve lidar com o multiculturalismo e a demanda por reconhecimento de grupos conforme etnia, sexo, religião, entre outros. Taylor, então, se propõe a repensar o liberalismo para se alcançar uma sociedade justa, com a inclusão das diferenças na esfera pública, baseado em metas públicas e não no universalismo igualitário tradicional. Nesse enfoque, Taylor entende a identidade como “a compreensão de quem somos, de nossas características fundamentais como seres humanos” (Taylor, 2009:241).
Desse modo se questiona quem seria o legítimo representante da identidade cultural. Criam-se conflitos entre as identidades e soluções dependem do empobrecimento das identidades com sua internalização no sistema normativo, visto que se faz imperativo sua codificação, não havendo outro meio senão sua tradução a uma linguagem própria em código (Resta, 2014: 71). Compreende-se uma regra de solução do próprio conflito de identidade, na qual as identidades devem ser as identidades comuns a todos (Resta, 2014: 71).
Questiona-se o paradoxo da identidade geracional sobre a base de sua diferença, observando um tipo único de código das gerações ao invés de observar a partir de dentro do seu próprio código geracional. Assim, as gerações são substituídas pelas outras e este código paradoxal que as constroem, através principalmente da condição mais sólida da identidade que se blinda com seu chauvinismo ante a mutabilidade e contingências (Resta, 2014: 81). Ressalta-se mais uma vez que "as gerações passam ou são passadas, mas o dado da mutabilidade não impede o constituir-se das identidades simétricas e opostas" (Resta, 2014: 81).
Fala-se de movimentos de aproximação da teoria em direção a uma definição da consistency da identidade:
Primeiro movimento para definir a identidade do ligame indissolúvel entre a identidade e a diferença, como ligame entre uma identidade e uma diferença enquanto a diferença entre uma identidade e uma diferença e assim por diante (Resta, 2014: 86). Segundo o autor, há um ligame infinito e duplo no seu sentido (double bind).
O segundo movimento de definição foi de reconstruir uma característica eletiva da identidade: aquela pela qual, construtivamente, a identidade escolhe não a diferença simplesmente, mas a sua diferença e a diferença escolhe a sua identidade (Resta, 2014: 86). O autor aborda ou em oscilação própria fixada (para-noia) ou em oscilações binária do próprio código (meta-noia).
O terceiro movimento é "o espaço que colma ou espaço que é colmatado" (Resta, 2014: 86). Mais precisamente, o problema posto é entre corpo e alma.
O quarto movimento de definição foi aquele reflexivo que tanto a identidade, quanto a sua teoria colocam em jogo, quando percebem inadequações da observação e se corrige o disparo, começando a se dirigir reflexivamente a si mesmo (Resta, 2014: 87). A identidade observa a identidade, sem reduções a máscaras no theatrum publicum.
O quinto movimento é, consoante o autor, diretamente complementar ao precedente como a identidade fala de si e se apresenta a si mesma mais que ao seu público, não tem um eu irreduzível e soberano da identidade (Resta, 2014: 87). Compreende-se a decomposição em várias identidades.
Tem-se a identidade reconstruída que desliza lentamente na identidade codificada e seu código elabora todos os sentidos possíveis do reconhecimento, que retomam categorias essenciais, a saber, o espaço e o tempo. Por meio de uma identidade codificada se recorda sempre "o quanto os limites entre o interno e o externo, entre o auto e o heterodefinido são muito láveis e quanto tudo tornam a se colocar no vazio espaço invisível" (Resta, 2014: 88). Ou seja, a identidade e teoria são apenas o que resta a um náufrago, a busca eterna por esse espaço vazio invisível e por colocar-se no jogo do tempo:
Os percursos da identidade encontram sempre algum sargento que, seja também pelas causas publicamente mais dignas e necessárias, decomporá e recomporá as peças com as quais é construída: outras medições seriam possíveis e à identidade não permanecerá outra coisa que a percepção do próprio desencanto estatístico da totalidade (Resta, 2014: 95).
Percebe-se que a identidade deixa de ser um dado natural e começa a ser lida como um processo específico. A identidade passa a ser observada como mecanismo que se modifica no tempo e como se compõe de elementos que se transformam continuamente, necessitando reconexões e ajustes das conexões já existentes (Resta, 2014: 97).
A identidade se encontra na reapropriação do próprio passado. Por sua vez quanto mais a natureza "íntima" de um homem ou e um povo "possui raízes fortes, tanto mais se empossará e apropriará do passado" (Resta, 2014: 99). Bem dizer que governar é um processo do qual se é governado por uma "força plástica", uma arte combinatória de difícil exercício.
Pensa-se em inverter o processo pelo qual a memória e o esquecimento trabalham definindo a identidade como uma verdadeira lição de existência "que consiste não em uma virtude normativa, mas na prática cotidiana de reunir o "tempo justo" do esquecimento" e o "tempo justo" da recordação" (Resta, 2014: 99). A identidade se mostra nos seus múltiplos limites e aumentar as possibilidades de atravessamentos, tais quais a capacidade de narração e descrição (Resta, 2014:102).
Media-se, como uma forma verbal, ou seja, conota uma atividade de mediação ao religar "aquilo que agora é desconexo porque a relação e o circuito são interrompidos, mas o circuito e a relação eram e podiam ainda estar em funcionamento" (Resta, 2014: 72). Praticamente, tudo é passível de mediação.
Há a compreensão da hermenêutica como espaço comum de "medialidade" da linguagem dos falantes. Reúne, por sua vez, os falantes para além da diferença das linguagens, como também, em todos os outros sentidos, pela diferença das linguagens, pela criação de uma "terceira" língua. Resta questiona se essa linguagem seria uma metalíngua ou apenas uma outra língua capaz de interpretar os dialetos dos falantes. Ademais, vê-se o quanto se modifica na mediação quanto à hermenêutica e ao jogo da mediação, mas sobretudo na representação de uma identidade (Resta, 2014:75).
Cabe lembrar inclusive da fraternidade e sua implicação no resgate de várias dimensões da vida que retornam hoje, exatamente porque a perspectiva da codivisão é a alternativa possível para superar outras dificuldades atuais, por exemplo, o fim das delimitações geográficas e políticas do Estado-nação. Aqui, a fraternidade se apresenta como um desafio cosmopolítico, revelando, assim, suas paradoxalidades. Mas não só isso: apresenta-se também como paradoxo, pois mostra, ao mesmo tempo, sua falácia e suas possibilidades. Por exemplo: ou os direitos são de fato inclusivos ou não existem (Martini, 2017: 280).
Reflete-se sobre a solidariedade e sua referência ao apoio mútuo dos indivíduos, contribuindo ao centro de referência da fraternidade que é uma relação intersubjetiva, ou seja, de reconhecimento a partir do outro, marcada por uma relação horizontal e igualitária, que exige dos indivíduos igualmente o reconhecimento mútuo e as responsabilidades comunitárias, de forma a implementar e proteger interesses transindividuais a exemplo do direito à identidade, como a de gênero (Machado, 2017: 203).
O que importa para essa análise é que a fraternidade reconhece determinados valores fundamentais para a afirmação da democracia (Gonthier, 2000: 574), principalmente aqueles de afirmação e defesa identitárias. O primeiro que se destaca é a noção de empatia – vinculado à concepção de equidade que permeia determinada comunidade, noção que incorpora a ideia de suavização das diferenças na medida das desigualdades dos indivíduos. A segunda compreensão incorporada é a de inclusão, que está associada a ideias de deveres, tanto do Estado quanto dos demais indivíduos. Por conseguinte, a fraternidade implica a valorização dentro da própria comunidade das noções de compromisso (commitment) e de responsabilidade (responsability). Como corolário lógico desses dois valores, estão as noções de confiança e de cooperação, que encontram relação, por sua vez, com a ideia de associação em busca de uma sociedade mais justa e equânime. Por essas noções, uma postura fraterna – baseada na empatia, na inclusão, na confiança, na associação – permite a afirmação dos direitos, especialmente os identitários, e de uma democracia justa e livre de violências.
III. Os novos Direitos Humanos e feminismos
Os movimentos para Giddens são aglutinados entre as ações que são geradas por tensões estruturais, a exemplo de movimentos negros e movimentos feministas, por crenças generalizadas, como os movimentos dos direitos civis, distúrbios e violências, tais como, movimentos de rua, quebraquebras etc., e movimentos que são deflagrados por situações de controle social, por exemplo, movimento contra as reformas da Constituição brasileira (Giddens, 1993: 145). Já Touraine sem se preocupar com a criação de uma tipologia, apresenta um leque maior de registros históricos de movimentos sociais, subdividindo-os em messiânicos, camponeses, de defesa comunitária, de defesa da identidade, lutas urbanas, novos movimentos sociais, movimentos históricos, movimentos políticos e lutas culturais (Touraine, 1989: 98).
Tem-se o exame de Laclau do surgimento de movimentos centrados em questões identitárias, também denominados de “novos movimentos sociais”, visto que problemática do sujeito passou a ser tratada de forma diferenciada na teoria sociológica (Laclau, 1986: 45).
Sobre os direitos humanos, Boaventura de Sousa Santos indica que estão postos como uma bandeira que surge dentro dos movimentos populares, uma vez que se está perante uma crise aparentemente irreversível de projetos de emancipação, tem-se essas mesmas forças progressistas que recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem da emancipação. Ou seja, para o autor, é como se os direitos humanos fossem invocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo (Santos, 1997: 99).
Boaventura, desse modo, descreve essa relação de contradição como uma “tensão dialética que ocorre entre o Estado e a sociedade civil”, estando os direitos humanos no cerne desta tensão (Santos, 1997:. 106). A primeira geração de direitos humanos, a saber os direitos civis e políticos, foi concebida prioritariamente como uma luta da sociedade contra o Estado, na condição de maior violador potencial de direitos, enquanto os direitos de segunda e terceira gerações (os direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais) pressupõem o Estado como garantidor.
Nesse sentido, argumenta-se que as necessidades cotidianas levam à mobilização de movimentos sociais, as transformações sociais levam à transformação das necessidades humanas. O que, por sua vez, impactará nos processos reivindicatórios por novos direitos.
A teoria de Nancy Fraser se apresenta como uma chave de leitura crucial ao entendimento dos feminismos3 surgidos após a segunda onda e com o despontamento da Nova Esquerda, ao revelar possibilidades de uma aliança entre emancipação e proteção social, que faça frente ao neoliberalismo. Fraser retoma a discussão esquecida da justiça distributiva como uma direção a ser aprofundada pelas políticas feministas ao passo que fortalece identidades através do reconhecimento das diferenças. Essa “política de identidade coincidiu com um desdobramento histórico mais amplo: o esgarçamento da democracia social baseada na ideia de nação, graças à pressão do neoliberalismo global” (Fraser, 2007: 293) traz impedimentos à aplicação de uma teoria do reconhecimento. Diante de dilemas feministas atuais, tais quais, debates sobre multiculturalismo e defesa da não subordinação de corpos femininos diante de mutilações genitais, ou até mesmo, questionamentos sobre a paridade de gênero em número em instituições políticas e judiciais como sendo suficientes e eficazes ou não para mudança cultural da sociedade, são enfrentados por ela em sua argumentação, demonstrando a ausência de soluções dadas pela teoria identitária4.
Obviamente, Fraser não tem a pretensão e nem sua teoria de esgotar todos os anseios as questões advindas dos feminismos como um todo, porém em boa medida contrapõe ao grande esquecimento atual sobre o debate da desigualdade econômica entre homens e mulheres, também refletidas em outros marcadores sociais, tais quais, raciais, étnicos, nacionalidades, religiosos e de classe. A autora mantém as diferenciações e antagonismos dos feminismos no seu próprio âmbito de suas discussões, o qual não deveria fazer parte da centralidade do movimento, a fim de continuar avançando em direção à paridade definitiva entre os gêneros. A descrença na capacidade de feminismos gerarem mudanças, resulta em grande parte pelo afastamento destes da arena política e da luta contra a realidade econômica instaurada há séculos, que subjuga o feminino à baixa remuneração e à invisibilidade do cuidado realizado em ambientes públicos, com profissões “exclusivas” do gênero feminino, e domésticos.
Fraser vai tentar retomar em sua teoria a pujança do feminismo da segunda onda e do surgimento de novos movimentos sociais que desafiaram juntos as estruturas normatizadoras da social-democracia do pós-Segunda Guerra. Fala-se em um projeto e um processo transnacional de política (Fraser, 2007: 293), na terceira fase do feminismo em formas gerais, com referenciais ainda europeus e estadunidenses.
Com fortes debates acadêmicos sobre a “diferença”, formou-se então um culturalismo truncado, de uma política culturalizada de reconhecimento, sem qualquer defesa à hegemonia do fundamentalismo de livre mercado, visto o esquecimento dos debates sobre as políticas de redistribuição (Fraser, 2007: 297). Em geral, então, nem os teóricos da distribuição nem os teóricos do reconhecimento conseguiram sanar adequadamente as preocupações um do outro5. Assim, em vez de endossando qualquer um de seus paradigmas com a exclusão do outro, propõe-se analisar a teoria bidimensional de justiça de Fraser, a qual trata a distribuição e o reconhecimento como perspectivas e dimensões distintas de justiça, sem reduzir um deles ao outro, trazendo ambas dimensões para dentro de uma estrutura mais ampla e abrangente.
O núcleo normativo da concepção da autora é a noção de paridade participativa. De acordo com esta norma, a justiça requer arranjos sociais, as quais permitem que todos os membros (adultos) da sociedade interajam uns com os outros como pares. Para que a paridade participativa seja possível, afirma Fraser, que duas condições devem ser satisfeita, pelo menos. Em primeiro lugar, a distribuição dos recursos materiais deve ser tamanha que garanta a independência e a voz dos participantes. Em segundo lugar, a interpretação e a avaliação de padrões culturais institucionalizados expressem igual respeito por todos os participantes e também garantam oportunidades iguais para alcançar a estima social. Ressalta-se que ambas as condições são necessárias para a paridade participativa e que nenhuma das duas sozinhas são suficientes.
Nessa questão, cabe a reflexão sobre a retomada do direito como lugar de embate e travamento também das lutas de gênero, posicionando aspectos da justiça a fim de inserir esses debates dentro e fora do campo jurídico. Para tanto, endossam-se questionamentos de rupturas, a qual postula Carol Smart (2016)6.
Para além do romantismo do direito como instrumento transformador por si só, Smart inicia uma crítica aprofundada da contestação que deve vir de um discurso naturalista, muitas vezes, essencialista e universal, o qual invisibiliza as relações de gênero em sua composição e operação, aflorando ainda mais as subordinações presentes na sociedade. Travar visões interseccionais de gênero, raça e classe ao direito, especialmente, o brasileiro é crucial para a superação de injustiças7.
IV. Mercosul, resistência e proteção de direitos
Estuda-se o arcabouço legislativo dos países do Mercosul a fim de analisar sua efetividade na garantia dos direitos das mulheres em seu reconhecimento das garantias dos direitos humanos das mulheres, como uma luta por uma identidade de gênero não só fronteiriça, todavia compartilhada fraternamente em espaços criadores de defesa e proteção de direitos para fins de equidade social e cultural.
Inicia-se análise pela Lei nº 26.791 da Argentina, a qual tipifica o feminicídio como agravante do homicídio, Código Penal Argentino art. 80 (Argentina, 2012). Em particular, esta lei consistiu na modificação dos incisos 1 e 4 do artigo 80 e na inclusão dos incisos 11 e 12, que impõem a pena de prisão ou prisão perpétua para quem matar “mulher quando o ato for perpetrado por um homem e mediar a violência de gênero " (seção 11) e a quem o fez" com o propósito de causar sofrimento a uma pessoa com quem ele mantém ou manteve um relacionamento nos termos da seção 1 "(seção 12), com as quais as figuras de feminicídio são incorporadas.
A classificação de feminicídio contribuiu para tornar visível uma das formas mais extremas de violência contra a mulher e as consequências na vida de suas filhas e filhos. Muitas vezes, meninos e meninas são vítimas de “feminicídios vinculados”, ou seja, ou seja, foram assassinados pelo feminicídio para “punir” ou “vingar” a mulher.
Como política pública de reparação, foi sancionado o Regime de Reparação Econômica para Meninas, Rapazes e Adolescentes Lei n.º 27.452/ 2018, conhecida por “Lei Brisa”, que prevê a reparação econômica de crianças e adolescentes menores de vinte e um anos, ou para pessoas com deficiência sem cuidados parentais devido à violência de gênero e/ou intrafamiliar. Prevê-se que esta lei deva entrar em vigor quando o progenitor e/ou progenitor aparentado tiver sido processado e/ou condenado como autor, coautor, instigador ou cúmplice do crime de homicídio de sua genitora (violência de gênero / feminicídio)8.
Diante de uma legislação vasta de direitos de mulheres e meninas, a qual determinou a instalação de redes de proteção e atendimento especializado, a Argentina sofreu um drástico aumento de denúncias de violência de gênero, em torno de 39% a mais durante o isolamento devido a pandemia do COVID-19. E, desde o início do confinamento em 20 de março, houve aproximadamente 19 feminicídios.
Em 30 dezembro de 2020, o Senado Argentino aprovou a Lei do Aborto (Lei 27.610), entrando em vigor em 14 de janeiro de 2021. Cabe lembrar a longa luta dos movimentos feministas, a exemplo de março de 2018 quando foi apresentado no Câmara dos Deputados um projeto de lei para lidar com a interrupção voluntária da gravidez. Era a sétima vez que um projeto dessa natureza foi apresentado, mas a primeira vez que acessou a instância de debate e voto. O então presidente, Mauricio Macri, mostrou-se aberto ao debate, mas contrário à legalização do aborto (Olguín, 2019). O projeto obteve média sanção na Câmara dos Deputados (129 votos a favor, 125 contra, 1 abstenção), mas ficou paralisado no Senado (38 votos contra, 31 a favor). O contrário do que aconteceu na votação em dezembro de 2020, no qual foi alcançada com 131 votos positivos, 117 negativos e seis abstenções, resultando na aprovação da lei.
Segundo estimativas, entre 2010 e 2014 houve cerca de 6,5 milhões de abortos na América Latina anualmente e Caribe; cerca de 760.000 mulheres foram atendidas anualmente devido a complicações de saúde de abortos inseguros, e estima-se que o 10% de todas as mortes maternas foram derivadas deles. Na Argentina, estima que haja cerca de 450.000 abortos anuais, sendo que 75% dos casos são feitos com o sistema para interromper o aborto ou tratar seus efeitos (sepse, sangramento grave ou lesão ao útero, bexiga ou intestino) (Monteverde y Tarragona, 2019).
Legalizar significa passar de um “direito negativo” (sem interferência do Estado na eleição individual), para um "direito positivo" (requer ações declarações afirmativas do Estado). Envolve demandar benefícios e serviços públicos, como banheiros públicos, que garantem o acesso igualitário a uma interrupção de gravidez segura, ao reivindicar a secularização da lei, a processo de de-imbricação de detritos essencialista religioso, dogmático e conservadores do discurso jurídico estatal (Monte y Vaggione, 2019).
A partir da manifestação da CIDH, o Brasil promulgou a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha. A lei criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher e prevê a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, além de estabelecer medidas de atendimento e proteção à mulher em situação de violência doméstica e família.
Esse instrumento legal evidencia a preocupação em detalhar e especificar direitos e garantias das mulheres e estabelece medidas cautelares emergenciais, podendo inclusive conceder pensão alimentícia provisória em favor da mulher, podendo deter os agressores em flagrante delito ou realizar prisão provisória quando envolve uma ameaça iminente à integridade física da mulher. A Lei também prevê medidas de proteção à mulher, como a retirada do agressor de casa, além de representar significativa elasticidade ao conceito de violência para incluir toda e qualquer forma de violência, seja ela física, psicológica, moral, patrimonial ou sexual, considerando-a uma violação dos direitos humanos.
A Lei Maria da Penha sofreu alteração pela Lei nº 13.827 / 2019, inclusive para autorizar a aplicação de medida projetiva emergencial pela autoridade judiciária ou policial para mulheres em situação de violência doméstica e familiar, ou para seus dependentes, e determinar o registro da medida projetiva emergencial em banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça.
Mesmo assim, a questão da violência doméstica no Brasil é sistêmica e suas taxas aumentam desde 2017, agravadas no contexto da pandemia do COVID-19, com as vítimas submetidas ao necessário isolamento social. Constatou-se a diminuição das ligações para o Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, criada em 2005, e hoje gerida pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Dados deste serviço, publicados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram uma queda nacional de 9% nas denúncias recebidas, comparando os registros do mês de março de 2020 com março de 2019 (Fórum, 2020). Mas há insuficiência de dados, uma tendência do governo brasileiro presente em diversas áreas e, por isto, a pesquisa deteve-se apenas às informações sobre os estados do Acre, Mato Grosso, Pará, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul e São Paulo. Com exceção de Mato Grosso e Rio Grande do Sul, todos os outros tiveram redução no número de denúncias. No Pará, a redução foi de 40% e, no Rio Grande do Norte, de 33%. Já no Mato Grosso, as denúncias aumentaram quase 10%.
A mesma pesquisa também mostra que os números de feminicídios e homicídios de mulheres em São Paulo aumentou 46% na comparação de março de 2020 com março de 2019 e duplicou na primeira quinzena de abril. No Acre, o crescimento foi de 67% e no Rio Grande do Norte o número triplicou em março de 2020. No Rio Grande do Sul não houve variação no número de feminicídios.
Veja a Lei nº 13.979 promulgada em fevereiro de 2019 no Brasil, que dispõe sobre as medidas gerais de enfrentamento da emergência sanitária provocada pela COVID-19, que não contém qualquer estratégia em relação ao problema da violência doméstica (Brasil, 2020a). Com base nesta Lei (que cobra do Estado o dever de realizar campanhas de informação), o Conselho Nacional de Justiça e a Associação dos Magistrados Brasileiros, com apoio do Supremo e do Ministério da Justiça e da Segurança Pública lançaram, em 10 de junho de 2020 a campanha Sinal Vermelho, na qual as mulheres que estão sob ameaça foram orientadas a recorrer à rede de farmácias como espaço alternativo para pedirem socorro (Conselho, 2020).
Entretanto, medidas robustas precisam ser tomadas para garantir os atendimentos das vítimas. Constatada a grave lacuna na Lei Geral 13.979, proliferaram proposições legislativas para alterá-la ou mesmo alterar a Lei Maria da Penha. Em ano eleitoral, a tramitação dessas propostas desperta interesses diversos, revelando uma teia imbricada de objetivos e intenções tanto progressistas como conservadores. Lança-se um olhar sobre este panorama no Congresso Nacional Brasileiro, que em 7 de julho de 2020, sancionou a Lei nº 14.022, com as primeiras medidas específicas de enfrentamento da violência doméstica e familiar no período de emergência sanitária, beneficiando mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência (Brasil, 2020b).
O projeto original da lei tinha 19 deputadas como autoras e, na tramitação, mais 17 aderiram como coautoras. Ou seja, assinaram o projeto quase metade das deputadas em exercício, de 17 diferentes partidos. Em síntese, a lei orienta sobre o atendimento presencial em caso de estupro e feminicídio, atendimento remoto com registros de ocorrência via site ou atendimento por telefone de emergência, além de medidas protetivas. O Senado também encaminhou à Câmara o Projeto de Lei nº 2.510/2020, que estabelece o dever, por parte de condôminos, locatários e síndicos, de informar às autoridades competentes os casos de violência doméstica e familiar contra a mulher (Senado, 2020).
Na República do Paraguai, a expressão “feminicídio” é também usada. Isso decorre do disposto no artigo 50 da citada Lei nº 5.777 de 2016 sobre Proteção Integral à Mulher, Contra Todas as Formas de Violência, que inclui dois artigos dedicados ao feminicídio, sua classificação e punição (Paraguay, 2016). A violência contra a mulher é definida no artigo 5º da referida lei, nos seguintes termos:
É a conduta que causa morte, dano ou sofrimento físico, sexual, psicológico, patrimonial ou econômico à mulher, em razão de sua condição como tal, em qualquer campo, que se exerça no quadro de relações de poder desiguais e discriminatórias (Paraguay, 2016).
Por sua vez, a violência feminicida é definida no artigo 6 da mesma regra que:
A ação que viola o direito fundamental à vida e causa ou tenta causar a morte da mulher e que seja motivada pela sua condição como tal, tanto na esfera pública como privada (Paraguay, 2016).
A mesma norma define violência física, psicológica e sexual, seguindo os critérios estabelecidos nas convenções, assim como a Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Paraguai pela Lei nº 605 de 1995. É importante destacar que no Paraguai ela sobrevive, em conjunto com a citada Lei nº 5.777 de 2016, Lei nº 1.600 de 2000 Contra a Violência Doméstica, que estabelece medidas de proteção civil para todas as pessoas, independentemente do sexo ou idade.
Todavia, o aumento do número de ligações recebidas nas linhas habilitadas para denúncias é um claro indicador dessa pandemia de violência de gênero que surge como efeito colateral da pandemia COVID-19. Os dados estatísticos corroboram essa premissa, visto que em março de 2019, o Ministério da Mulher do Paraguai registrou 417 atendimentos denunciando ataques ao número de atenção à violência contra a mulher e em março deste ano, o número subiu para 626. Somente na primeira quinzena de abril de 2020 foram relatadas 325 denúncias (Paraguay, 2020).
Em 2002, o Estado uruguaio promulgou a Lei nº 17.514 que incorporou o crime de violência doméstica ao Código Penal por meio do artigo 321, que estabelece que (Uruguay, 2002):
Qualquer pessoa que, por meio de violência ou de ameaças prolongadas ao longo do tempo, cause um ou mais danos pessoais a uma pessoa com as quais tenha ou tenha mantido relação afetiva ou de parentesco, independentemente da existência de vínculo jurídico, será punido com pena de prisão de seis a vinte e quatro meses (Uruguay, 2002).
Já a Lei nº 17.815 de 2004, que trata da violência sexual cometida contra meninos, meninas, adolescentes e pessoas com deficiência (URUGUAY, 2004). Tornou-se o assédio sexual, tanto no local de trabalho quanto na educação e o reconheceu como uma forma de violência de gênero estrutural. Igualmente, por meio da Lei nº 18.104 sobre Igualdade de Oportunidades e Direitos de 2007, é consagrado o princípio da igualdade entre homens e mulheres e declaradas de interesse geral as atividades voltadas para a igualdade entre homens e mulheres, confiando ao Estado o dever de adotar políticas públicas que integrem a perspectiva de gênero (Uruguay, 2007). Criou-se também o Conselho Nacional de Coordenação de Políticas Públicas para a Igualdade de Gênero (CNG), presidido pelo Instituto Nacional da Mulher (INMUJERES). Em 2017, também foi promulgada a Lei nº 19.580, Lei sobre Violência contra a Mulher, referente aos atos de discriminação e feminicídio, que modificou os artigos 311 e 312 do Código Penal (Uruguay, 2017).
Segundo publicação do Ministério do Interior em 2017 sobre os feminicídios no Uruguai, os homicídios de mulheres nas mãos de ex-companheiros, apenas pelo fato de serem mulheres, é crescente, apesar dos números evidenciarem o oposto (Ministério, 2020). Em 2015 foram assassinadas 26 mulheres e no ano de 2016, ocorreram 16 feminicídios. Fazendo uma média desses dados, entre os anos de 2012 a 2016, obtém-se que nesse período 19 mulheres morreram por ano em decorrência de violência de gênero. O relatório de 2014 da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) mostra que o Uruguai ocupa o segundo lugar na América Latina em termos de número de mulheres assassinadas.
Essa realidade não alterou e teve uma piora no período da pandemia em solo uruguaio. Segundo as autoridades, as denúncias policiais de violência contra as mulheres caíram 8% nos primeiros 45 dias de confinamento em comparação com o mesmo período do ano passado. No entanto, as consultas e pedidos de ajuda via telefone sobre violência de gênero aumentaram de forma drástica em 80%. Desde janeiro foram cometidos 11 feminicídios e 13 tentativas de feminicídio (Instituto, 2020). Somente no ano passado houve 40 mil denúncias. Na mesma pesquisa governamental de 2019 traz que 76,7% das mulheres disseram ter sofrido violência de gênero ao longo de sua vida, e 47% disseram ter sofrido de companheiros ou ex-companheiros (Ministério, 2020).
O custo humano da violência de gênero é enorme para a sociedade, pelo não reconhecimento do direito à vida e à saúde das mulheres e meninas, especialmente aos direitos identitários como transformadores culturais e sociais.
V. Considerações finais
A análise desenvolvida ao longo do estudo permitiu confirmar que o direito à identidade, especialmente em sua dimensão de gênero, constitui um elemento essencial para a promoção da justiça social e para o fortalecimento democrático nas sociedades do Mercosul. A pesquisa evidenciou que a identidade não pode ser tratada como algo fixo ou estático, mas sim como um processo relacional que demanda reconhecimento mútuo e mediação constante em contextos multiculturais. Quando esse reconhecimento é negado, ocorrem violações de direitos que afetam, de forma particularmente grave, mulheres e outros grupos historicamente marginalizados.
Os resultados mostraram que legislações como a Lei Maria da Penha, no Brasil, e a legalização do aborto na Argentina representam avanços importantes, mas ainda insuficientes diante da persistência da violência de gênero e da desigualdade material. O aumento dos casos de feminicídio durante a pandemia revelou as fragilidades das políticas públicas de proteção, que em muitos casos não conseguiram oferecer suporte adequado às vítimas. Além disso, observou-se que a ausência de dados e o desmonte de serviços essenciais também contribuíram para a precarização da resposta estatal em momentos de crise.
Ficou claro que políticas de redistribuição econômica precisam ser articuladas com políticas de reconhecimento identitário, conforme propõe a teoria da justiça em duas dimensões. A simples criação de leis não garante por si só a transformação social. É necessário um compromisso mais profundo com a inclusão, que envolva não apenas os aparelhos institucionais do Estado, mas também a sociedade civil, os movimentos sociais e as instâncias locais de atuação comunitária. A equidade, nesse sentido, depende tanto de condições materiais quanto do reconhecimento simbólico das identidades plurais.
Outro resultado importante foi a identificação da fraternidade como princípio ético-político capaz de promover uma convivência mais justa e inclusiva. Longe de ser um valor abstrato, a fraternidade exige compromisso com a empatia, a solidariedade e a responsabilidade coletiva, fortalecendo redes de apoio intersetoriais e promovendo a transformação das relações sociais. Essa perspectiva fraterna mostra-se especialmente potente em contextos regionais como o Mercosul, onde a integração entre diferentes culturas e legislações pode fortalecer o enfrentamento conjunto das desigualdades.
Em síntese, conclui-se que o direito à identidade é um eixo estruturante para a efetivação dos direitos humanos das mulheres no Mercosul. A superação das desigualdades exige políticas públicas integradas que reconheçam a complexidade das identidades e enfrentam as violências de maneira ampla e coordenada. A identidade, compreendida como um direito em si mesma, transforma-se também em instrumento de resistência e de construção de um futuro mais igualitário, plural e democrático.
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1 Doutorado em Evoluzione dei Sistemi Giuridici e Nuovi Diritti pela Università Degli Studi di Lecce (2001), Pós-doutorado em Direito (Roma Tre, 2006) e Pós-doutorado em Políticas Públicas (Universidade de Salerno, 2010). Professora do programa de pós-graduação da UNILASALLE Canoas, Professora do programa de pós-graduação e Diretora de Pós-graduação Stricto Sensu da UNIFACVEST, Professora visitante da Università Ga-briele dAnnunzio di Chieti-Pescara (2022), coordenadora e Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Direito na Universidade Ritter dos Reis. Email: srmartini@gmail.com. ORCID: orcid.org/0000-0002-5437-648X.
2 Doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2022) e com bolsa CAPES/CNPQ (2020-2022). Pós-doutor em Direitos Humanos e Segurança pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUÍ. Em estágio pós-doutoral em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito SP (FADISP). Ema-il: stephanifleckrosa@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7326-6887.
3 Nesse estudo se usa o termo feminismos, em vez de feminismo, visto que se entende um conjunto de teorias feministas e seus movimentos.
4 Os discursos tanto construtivistas quanto desconstrutivistas do gênero não avançaram suficientemente nos problemas das desigualdades e nas rupturas do binômio sexual. Ver Gonzáles-Marín (2011). Ainda sobre a questão identitária cabe a leitura de Judith Butler (2016). “A dispersão do humanismo liberal com a pretensão de uma subjetividade completa, e de uma racionalidade reveladora, na qual o homem é o autor de seus pensamentos e discursos, talvez seja mais importante para a desconstrução da masculinidade, que é para as mulheres não ter sido nunca completamente incluído neste discurso” (Thornton, 1986: 7, tradução do autor).
5 Isso não exclui a priori que algum autor poderia estender com sucesso o paradigma distributivo para englobar questões de culturais. Nem que algum autor pudesse estender com sucesso o paradigma de reconhecimento para abranger a estrutura do capitalismo, embora improvável, sendo necessário atender vários requisitos essenciais simultaneamente: primeiro, deve-se evitar hipostasiar cultura e diferenças culturais; segundo, deve-se respeitar a necessidade de justificação moral não sectária e deontológica sob as condições modernas de valorizar o pluralismo; terceiro, deve-se levar em consideração o caráter diferenciado de sociedade capitalista, na qual status e classe podem divergir; quarto, deve-se evitar visões excessivamente unitárias ou durkheimianas de integração cultural que postulam um único padrão de valores culturais que é compartilhado por todos e que permeia todas as instituições e práticas sociais. Veja mais em Fraser e Honneth (2004).
6 Para um melhor entendimento: “O trabalho do feminismo é desconstruir o discurso naturalista, negação do gênero do direito, revelando constantemente o contexto em que se constituiu e traçando paralelos com outras áreas da vida social. A lei não é uma entidade flutuante, ela está ancorada no patriarcado, bem como nas divisões de classe e divisões étnicas” (Smart, 2016:122).
7 Para saber mais sobre a temática brasileira ver González (1982) e Carneiro (1995).
8 Regulamentado pelo Decreto nº 871/2018, de 28 de setembro de 2018, com o Anexo I onde fica estipulado, no artigo 1º, que a reparação será aplicada quando: a. Seu pai e / ou pai relacionado foi processado e / ou condenado. Tanto a acusação quanto a condenação devem ser finais. b. O encerramento da ação penal por morte foi declarado pela autoridade judiciária competente. A causa da morte por violência doméstica e / ou de gênero foi determinada pela autoridade judiciária competente. Da mesma forma, entre outras questões, seu artigo 3 estabelece que a reparação financeira a favor dos destinatários será retroativa à data de cometimento do delito que lhe deu origem quando este ocorrer após a promulgação da Lei nº 27.452 e que, nos casos em que a prática do crime que dá origem à reparação econômica tenha ocorrido antes da promulgação da Lei nº 27.452, sua aplicação será retroativa à data de sua promulgação (Argentina, 2018).